1.7.05

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Um belo dia de janeiro de 1965 eu abri os olhos pela primeira vez. Não lembro nada deste dia, mas tenho certeza de que os olhos verdes de folha nova de minha mãe estavam grudados em mim, e que ela provavelmente fez a maior festa quando percebeu que meus olhinhos de cor indefinida – mudando de verde intenso para cinza-azulado até hoje, a seu bel-prazer – estavam tentando se fixar nela.

Minha avó, esta cabocla bonita da foto acima, já era uma velha bugra encarquilhadinha de quase oitenta anos, quatorze filhos, muitas alegrias e muitos sofrimentos nas costas. Ela em nada lembrava a moça altaneira desta foto. Olhar baço atrás de grossas lentes esverdeadas, ainda assim ela me ensinou a costurar e a fazer roupinhas para minhas bonecas, e fazia a mais delicada renda com agulhas de crochê.

À noite, antes de dormir, eu deitava minha cabeça naquele regaço magrinho e escutava bem compenetrada e quietinha minha avó rezar seu rosário. Eu achava lindo saber que minha avó podia conversar com Deus. Depois, ela abria um antigo livro entitulado “Estórias da Carochinha” e contava alguma traquinagem do Pedro Malasartes para mim. Finalmente ela me abençoava e me mandava para minha própria cama, para dormir.

Eu tinha pouco mais de cinco anos quando ela morreu. A mansidão dela ficou gravada na minha alma. Aliás, sua irmã mais nova, que ainda viveu muitos anos depois dela, minha tia-avó, era outra velhinha adorável, e pude usufruir de sua companhia até o final de minha adolescência. Tia Virginia tinha paciência e disposição para fazer qualquer coisa que eu pedisse. Dobrava as doloridas juntas, atacadas por reumatismo deformador, e sentava comigo no chão da varanda para brincar de massinha por horas a fio. Contava longas histórias sobre a fazenda onde cresceu com minha avó e seu irmão Sebastião, “que morreu menino ainda, picado de cobra”. Fazia biscoitinhos de polvilho só para me deixar moldá-los em forma de rosquinha ou apertar o garfo em cima dos redondinhos e deixar minha marca neles. Tia Vê foi quem me ensinou a ter alegria em cozinhar.

Minha avó paterna, que também se chamava Assunção, morreu faz três anos, aos noventa e sete. Ela era a elegante e vaidosa da família, italiana bonita da Calábria, pele aveludada e lisa até bem mais de setenta anos de idade. Ela cuidava com esmero desta pele, e eu sempre sabia que minha avó Assunta tinha chegado do Rio Grande para nos visitar quando abria a geladeira e via uma quantidade de potinhos de creme na porta.

Ela tinha duas covinhas lindas, e um furinho no queixo que meu pai também tem. Minha mãe contava que ficava apertando nossas faces e queixinhos de bebê na esperança que herdássemos as famosas covinhas da vovó. Esta não era nada encarquilhada, era uma mulher bela mesmo depois de muito entrada em anos, e eu me divertia muito com a vaidade mezzo-leviana, mezzo-inocente dela. Uma vez, quando ela já tinha seus oitenta e seis anos, eu fazia uma escova em seus cabelos já meio ralinhos, que ela nunca deixava de secar e enrolar depois do banho, e ela suspirou e disse: “Ai filha, tenho medo de não saber envelhecer...” Sorrindo, respondi: “Ah, vovó, nem se preocupe, você não vai passar por isto não.”

Ela passou sim, tadinha, da maneira mais cruel. Perdeu lentamente a visão e a mente, perdida entre as longas memórias do passado e o presente solitário, já há muito sem marido e sem o filho mais velho, seu grande companheiro, que também partiu anos antes dela. Morreu sozinha com a empregada, no apartamento onde morou por quase cinqüenta anos.

As mulheres de minha família costumam durar muito. Oitenta anos é uma idade razoavelmente normal para elas, que ainda estão fortes e lúcidas nesta etapa da vida. Não há caso de osteoporose na minha família, os órgãos costumam funcionar muito bem. Tudo dura muito tempo, e leva muito tempo para decair.

Tendo completado quarenta este ano, posso prever com uma certa tranqüilidade que tenho mais uns quarenta ou cinqüenta anos pela frente. Cheguei, portanto, na metade da minha vida. Sou, portanto, o que se chama de uma mulher de meia-idade.

O engraçado é que a menina que fazia biscoitinhos de polvilho com a Tia Vê ainda está aqui, e a moça de vinte e poucos anos que fazia escova nos cabelos da Vó Assunta ainda está aqui, e o bebêzinho que abriu os olhos desfocados para sua mãe ainda está aqui, e todas as outras Sues em suas idades e perplexidades, alegrias e medo ainda estão aqui, formando camadas e camadas de personalidade que vão se montando uma sobre a outra num mosaico complicado que só consigo entender de forma muito incompleta, incompleto que ele está.

E eu, que olho para dentro e vejo este mosaico multicor e complexo, que me fascina cada dia mais, descubro com surpresa que pessoas que me conhecem bem, que me amam, a quem amo muitíssimo, não conseguem ver nada disso. Vêem, isto sim, uma mulher fortona, que nunca fica com medo, que resiste a tudo, como uma boa e marrom mula de carga ou uma forte e marrom meia de varizes. Um ser utilitário e necessário, apesar de pouco atraente. O tipo de mulher que vira uma enfermeira ou uma English nanny, solteirona sem aparentes necessidades emocionais, fortes e estáveis, a quem os sarcásticos ingleses chamam sem muito cuidado de “The Old Battlewagon”.

Eu vejo isso, eu sofro com isso, porque sei das milhares de camadas sutis e diáfanas que minha alma tem, e sei que a força vem desta superposição, não apenas das muitas Sues, mas também de todas estas outras mulheres fortes e resistentes da minha família, que me moldaram, que estão dentro de mim e me dão força e estímulo cada vez que penso fraquejar.

Eu amo cada uma delas, cada etapa de Sue, cada olhar baço da Vó Calita, cada pequena vaidade da Vó Assunta, os olhos de folha nova da Mãe, as juntas deformadas da Tia Vê, sempre ocupadas em alguma tarefa da casa. Amo aquilo que elas me proporcionaram, e se quem está fora não consegue ver beleza nisto, eu lamento, porque é lindo de verdade.

Este post é para elas, para sua beleza comum que escondia uma profundeza e um abismo de maravilhas incomuns. Como toda mulher.