24.1.04




Pureza e Inocência



Um homem maduro. Só, absolutamente só, cujo único amigo era uma planta num vaso. Um homem que sobrevivia como uma criança no corpo de um matador profissional. Uma casca de dor em torno de uma alma pura. Um corpo doído, ferido, marcado, treinado para matar. Olhos de menino em dia de Natal ao assistir Gene Kelly dançar no cinema vazio.

Uma criança. Uma menina de 12 anos de idade. Linda como um camafeu, filha de pai traficante de cocaína e mãe alcoólatra e prostituta. Espancada. Espoliada de seus sonhos e da sua inocência. Uma mãezinha de faz de conta do irmãozinho, escapava para um mundo de faz de conta sempre que este se tornava dolorido demais. Perdida, esquecida, abandonada por tudo e por todos, fumava e balançava suas pernas penduradas no vão da escada.

Como eles conseguiam sobreviver era um mistério. Mas sobreviviam. Até que encontram um amor. Sim, um amor. O primeiro amor de suas vidas. Um amor de duas crianças à deriva num mundo mau. Um amor desconfiado, a princípio. Mas a maldade de que estavam cercados os atira de encontro um do outro, e eles descobrem que realmente se amam.

Mas ela tem DOZE ANOS, gritarão alguns. Ela tem milênios de anos de dor e de abuso e de desencanto, digo eu. E ele foi a única gentileza que ela jamais conheceu. E ele é só, só de enlouquecer, iletrado, simples como o camponês italiano que verdadeiramente é. E ela foi a primeira beleza verdadeira em sua vida. É um amor sem beijo, porque nenhum dos dois sabe beijar. Um amor sem sexo, porque nenhum dos dois equaciona sexo com amor.

Ao tentar matar o policial que matou toda sua família, a pequena faz desabar sobre eles toda a ira de Hades. Ele luta por ela como um gigante, mas que homem vai ganhar sozinho de um exército? Presos num edifício, com o céu caindo por sobre suas cabeças, apenas conseguiu fazer um pequeno buraco para que ela pudesse escapar. Ela, não eles. Ela sabe e ele sabe que vai ser trucidado. Ela não quer ir, de que adianta viver num mundo seco, ainda mais árido depois de provada a doçura do amor?

Ele fala todas as mentiras bondosas destes momentos: “vá, eu encontro você lá, juntos morremos com certeza, separados temos uma chance...” Ela sabe que é tudo mentira, mas deixa que ele a convença, porque sabe que é inútil, tão inútil. Num último momento ela faz um suave movimento para frente, lábios entreabertos que pedem “beija-me ao menos agora, esta última vez”. Ele não beija, coloca sua mão sobre a dela e faz um carinho, e aperta com força. Naquele microsegundo ela cresce, torna-se mulher, eles casam têm filhos e sentam calmamente no sofá para assistir a tevê até ficarem bem velhinhos, juntos.

Toda uma vida vivida num microsegundo. Depois, lágrimas e um urro de dor que fez todas as almas do purgatório gemerem em simpatia. E morte e mais abandono, e mais uma vez ela está sozinha num mundo muito hostil. Mas agora ela carrega um vaso de planta e a semente de um verdadeiro amor.

Acabei de assistir a um filme. Um filme que me colocou no chão. “O Profissional” com Jean Reno.


Le ciel dans une chambre ( Carla Bruni)
Quand tu es près de moi,
Cette chambre n’a plus de parois,
Mais des arbres oui, des arbres infinis,
Et quand tu es tellement près de moi,
C’est comme si ce plafond-là
Il n’existait plus, je vois le ciel penché sur nous...
Qui restons ainsi,
Abandonés tout comme si,
Il n’y avait plus rien, non plus rien d’autre au monde et
J’entends l’harmonica... mais on dirait un orgue,
Qui chante pour toi et pour moi,
Là-haut dans le ciel infini,
Et pour toi, et pour moi.


Il cielo in una stanza (Gino Paoli)

Quando sei qui com me
Questa stanza non ha più pareti
Ma alberi, alberi infiniti
E se tu sei vicino a me
Questo soffito, viola, no,
Non existe più, e vedo il cielo sopra noi.
Che restiamo Qui, abandonatti come se
Non ci fosse più niente, più niente al mondo.
Suona larmonica, mi sembre un organo
Che canta per te e per me
Su nell’immensità del cielo
E per te e per me.

O céu no quarto (Assunção Medeiros)

Quando estás comigo aqui
O quarto não tem paredes
Mas árvores, árvores infinitas
E se estás bem junto a mim
Este teto some, não,
Não existe mais, e vejo o céu sobre nós
Que pousamos aqui, abandonados assim
Como se não houvesse alguém mais no mundo.
Soa uma harmônica, me lembra um órgão
Que canta por ti e por mim
Sobre a imensidão do céu
E por ti e por mim.

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