10.1.05




Tsunamis, Tempestades e Outros Desastres



Sina. Palavra pequena que significa tanta coisa diferente. Irmã menos famosa do Destino, muita gente sequer acredita que ela exista. Quem acredita, geralmente pensa que ela é mesquinha e pequena, inimiga da humanidade.

Quando nos deparamos com os grandes desastres – como o tornado que desabrigou tantos em Santa Catarina e o tsunami que matou centenas de milhares na Ásia – nos perguntamos sempre porque. Quem ou o que ordena que uma onda leve tantas pessoas, casas, cause tanta destruição. Será gesto da ira Divina? Mais uma das travessuras do Destino e de sua malvada irmã Sina? Que sina é esta, Pai Eterno, que faz com que tantas pessoas transformem suas férias singelas na praia num inferno de dor e sofrimento?

Eu não acho que os acontecimentos sejam ordenados assim, de maneira tão burocrática. Não acredito que um Destino brincalhão nos pregue peças de mau gosto deste tamanho, por diversão. Verdadeiramente penso que estamos neste mundo para vencê-lo, como se vence uma prova de olimpíada ou uma batalha. Os obstáculos estão em toda a parte, pequenos, grandes, obstaculozinhos irritantes ou sofrimentos enormes como rochedos pontiagudos nos quais caímos. E um Deus mais amoroso e gentil que o malicioso Destino nos estende sempre a mão e diz: “Eu ajudo você a passar por isto, vem...”.

Nesta hora, a Sina não é maldosa, é a penas o conjunto de treinamentos que a vida nos manda para nos ensinar a ser mais fortes, mais confiantes nesta Mão estendida. A ver que os bons momentos da vida têm de ser guardados no fundo do coração, como a namorada que amarra as cartas do amado em fita de seda e as guarda em uma caixa perfumada de sachês e flores secas, como o tesouro de amor que são. Porque são estes bons momentos, é a Esperança na Beleza, na Alegria, na Bondade, na Felicidade que são nossas armas para vencermos as batalhas cotidianas e as especiais, que nos atingem como um murro quando inocentemente dobramos a esquina cantarolando.

Eu tenho uma sina. Uma sina que me rasga em tiras por dentro, mas que é uma sina bonita e especial, um verdadeiro presente da vida. Deus me manda os perdidos, os doentes, os solitários, os que precisam de amor. E a mim é forçoso que eu forneça a eles o que lhes falta: cuidado, atenção, remédio, carinho, o amor incondicional que cura e consola.

Para conseguir fazer isto, recebi de Deus a mãe mais amorosa que uma pessoa poderia ter, uma mãe que cuidava de mim como um antiquário cuida de um vaso Sèvres (estou boa de metáforas hoje... acho que porque não quero pensar reto demais, sob o risco de não conseguir escrever isto). Quando tinha 16 anos, esta mãe adoeceu. Câncer no seio esquerdo. Cinco anos de tratamento. Metástase no fígado. Cinco meses de agonia. Morte. Minha mãe me ensinou a cuidar e a morrer, e foi também o primeiro ser de quem cuidei em sua fase terminal.

Tarefas das mais diversas, difíceis, todas: fazer de conta que eu não estava perdida no meio de uma tempestade, porque minha mãe estava sem chão, e não podia mais ser o MEU chão; levá-la às sessões de quimioterapia, e ver como aquela medicação vagarosamente a maltratava, arrancando seus cabelos, maltratando sua vaidade, debilitando seu sistema imunológico; cuidar dela na sua última semana de vida no hospital, banhando, alimentando (enquanto ela comeu), limpando sua urina e suas fezes; servindo de auxiliar de cirurgia, quando o seu médico resolveu que tentaria aliviar sua respiração entrecortada fazendo uma punção abdominal para tirar o líquido do fígado que se desfazia lentamente com o tumor.

Tudo isto, que escrito parece pavorosamente duro, eu fazia movida pela mais premente necessidade de mostrar a ela que eu a amava, que eu não permitiria que ela passasse por aquilo sozinha, que eu queria que ela soubesse o quanto eu era GRATA pelo amor e cuidado que ela teve comigo, pelas coisas bonitas que ela me ensinou. Mas tudo isto tem um custo pessoal alto. Depois que minha mãe morreu, o sofrimento todo que estava engarrafado explodiu numa úlcera gástrica e em crises de choro que vinham de repente, e me sacodiam como uma boneca de pano, e me deixavam prostrada quando partiam.

Esta é a sina: dar de mim de tal forma a quem necessita, que sofro de ‘anemia da alma’. A cada parente doente, a cada bichinho que parte (já me despedi de quatro, todos muito amados), a cada perda, a energia que se esvaiu de mim retorna muito lentamente, e durante um tempo fico oca, inerte, entregue a um sofrimento contra o qual nada posso fazer. Não é possível reagir, só deixar o tsunami passar, e depois reconstruir o que ele botou abaixo. Não é só destruição, é também uma limpeza e uma renovação, mas que dói como se me arrancassem a pele.

Desta vez foi mais um bichinho: meu gato Tetê, que tirei das ruas quando ainda cabia na palma de minha mão, e de quem cuidei e em quem depositei todo meu afeto por seis anos. Um belo dia no início de dezembro, a surpresa: o gatinho que tiramos de casa um pouquinho apático, com um comportamento esquisito, ao chegar na clínica era um gato com uma patologia hepática grave, patologia que durante um mês comeu metade de sua massa corpórea e finalmente o levou domingo de tarde, nove de janeiro.

Lá vou eu, a mesma rotina de minha mãe: vigiar o soro, dar alimento, lavar, cuidar, fazer punção abdominal, ajudar a respirar, levar para a clínica, ver o rosto da veterinária ficar mais e mais grave. E assistir de perto mais uma batalha perdida para a morte.

Aqui, uma pausa. Deve ter gente lendo isto que vai ficar escandalizada, achando que eu estou equiparando o sofrimento de perder minha mãe com o sofrimento de perder um bicho de estimação. Não estou. Estou dizendo que o esforço desprendido no cuidar é o mesmo, as noites sem dormir são as mesmas, as lágrimas caem do mesmo jeito, e quando eles partem, a Sue está oca, e dentro dela está apenas o fantasma de uma dor que ela presenciou de muito perto, e que dentro dela ainda não se dissipou.

Peço então desculpas aos amigos que vêm aqui saber da Sue, ela está perdida numa praia deserta em algum lugar, esperando a tempestade passar para que ela possa começar a retirar os entulhos. Não sei com que freqüência virei aqui, nem o que vou escrever. Porque hoje, só o que sou é um gatinho moribundo lutando para respirar.

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