2.1.03

Impermanências

Daqui a dez dias completo 38 anos de idade. Estou muito quieta, pensativa, a me perguntar que trajetória foi essa que levou 38 anos, e para onde estou me encaminhando. Tive o impulso de fazer uma retrospectiva, que gostaria de compartilhar com vocês.

Nasci numa manhã chuvosa de 1965, e não pude comemorar meu primeiro e segundo aniversários devido à enchentes de verão que ocorreram no Rio de Janeiro. Até os quatro anos, morei com meus pais e meu irmão mais velho na casa de minha avó materna na Tijuca. Dos quatro aos sete anos, na vila militar na Ilha do Governador, e depois até os treze em Brasília.

Partindo de Brasília, fui morar dois anos em Washington D.C. Ao voltar de lá para o Rio de Janeiro, na virada dos quinze para os dezesseis anos, minha mãe descobriu um tumor no seio, que virou o epicentro de um furacão que abalou toda a família. Me vi, menina, responsável pela manutenção da casa toda, cozinha, limpeza, lavanderia, junto com a preparação para o vestibular e para a prova de proficiência em inglês da Universidade de Cambridge, em si quase um outro vestibular.

De alguma forma, sobrevivi ao ano de 1981 e cumpri todas as minhas obrigações de forma razoavelmente boa. Mas foi um ano que de certo modo terminou de moldar meu caráter e a forma com que reajo às intempéries da vida: estando meus pais totalmente envolvidos com a doença de minha mãe, aprendi a não levar aos outros meus problemas e sentimentos confusos, deixando-os no meu coração até que se resolvessem lá dentro. Demora mais, dói mais, bate-se mais com a cabeça na parede, mas é mais leve nas pessoas em torno de nós. Virou um comportamento fixo de muitos anos, até eu perceber que as pessoas não viam sequer a turbulência pela qual eu passava, e me tomavam por “forte” justamente quando eu precisava mais de um ombro onde encostar e chorar. Depois de atingir uma certa maturidade, convencida de que era um comportamento danoso, resolvi tentar mudar. Ainda estou tentando. Voltar a escrever ajudou muito.

Voltando à retrospectiva, nos meus 19 anos meu pai foi novamente transferido para fora do Rio, mas eu e meu irmão mais velho permanecemos aqui para levarmos adiante nossos estudos. Fiquei então como responsável pela minha própria casa, e sou até hoje. Entrei com os dois pés na idade adulta. Em 1986, quando tinha 21 anos, morre minha mãe, finalmente derrubada pela doença. Fiquei então emocionalmente responsável pelo término da educação de minha irmã mais nova, de 15 anos, e por tentar manter a família unida como antes. No final deste ano me formei na universidade e fui morar um ano com meu pai e minha irmã em Recife. Em 1988, quando meu pai foi transferido (novamente) para Brasília, voltei ao Rio para não mais sair. Meu irmão casou-se neste ano. Fiquei morando só no Rio até que, no final do ano de 1990, veio minha irmã caçula morar definitivamente comigo. Agora, em 2002, volta também meu pai.

Começo 2003 com uma vida verdadeiramente nova. Voltei a ser filha na casa onde era a cabeça. Estou virando uma Internauta heavy user, e ninguém se surpreendeu mais que eu. Tenho na Net este pequeno pedaço do meu coração e uma linda sala de estar, o Outonos, com meu querido Evandro Ferreira. Estou encontrando amigos em lugares distantes, que também escrevem em blogs, os quais amo sobremaneira.

Tudo isto era para fazer com que eu encarasse 2003 de uma forma otimista, pensando no alívio de responsabilidades, nos prazeres, no desenvolvimento pessoal e interpessoal que me aguarda. Mas infelizmente não me encontro neste estado de espírito. Começo a perceber uma fragilidade no meu pai, com 72 anos, que me faz prever que em alguns anos serei novamente a chefe desta casa. Com a redobrada responsabilidade de cuidar do meu querido ancião, o que prevejo ser extremamente complicado. O velho gaúcho não é manso!

Vejo o novo governo com os olhos arregalados de preocupação. Um governo cheio de perdedores e pessoas recalcadas (vocês repararam que quase todo o ministério e primeiro escalão do governo é composto de pessoas que foram rejeitadas nas eleições de seus respectivos estados?), com “contas a pagar” de um período que teria sido supostamente anistiado, mas parece ter sido apenas unilateralmente perdoado. Não conheço todos, mas o ministro da Ciência e Tecnologia, Sr. Roberto Amaral, foi meu professor por um ano em duas cadeiras na PUC do Rio, e era naquela época a pessoa mais amarga e mal-humorada que conheci. Este com certeza vai querer ver rolar algumas cabeças.

Com os olhos ainda mais arregalados, agora de dor e tristeza, vejo pessoas novinhas, que deviam estar tratando de fortalecer seus espíritos e enriquecer suas vidas com lastro de experiência e tolerância, lentamente se organizando em uma “resistência” que nada mais é que o avesso daquilo que repudiam. Citam santos altivos e obscuros, medievais, e estabelecem parâmetros elevadíssimos, idealizados, muito rígidos e totalmente falsos de cristianismo, mantendo-se, é claro, a salvo de qualquer coisa que os faça ver que estes parâmetros são irreais e inatingíveis. E sumariamente calando aqueles que os avisam disto.

Vejo diante de mim um ano de pesados fardos físicos, pois meu problema de coluna se complica e exige de mim a opção entre uma cirurgia nas costas e uma disciplina espartana de dieta e exercícios de fisioterapia. Vou ter, portanto, de modificar toda a minha rotina diária, para fazer caber – além do intenso trabalho de ensino e escrita, que infelizmente é bastante sedentário – uma campanha intensa de condicionamento físico, para que meu futuro não seja de eterna dor e desconforto.

O ano de 2003 começa portanto para mim com os primeiros ventos de uma forte tempestade. É um ano de abismo. Como 1981, vou ter de passar por ele da melhor forma possível, e realizar minhas tarefas a contento, de algum modo. Eu chego ao meu aniversário olhando para dentro deste abismo, e sabendo que vou ter de descer lá. Como até mesmo o Filho de Deus teve seu momento de falar “Pai, afasta de mim este cálice”, suo frio, choro e rezo muito. Breve há de chegar o momento do “Mas seja feita a Sua vontade, e não a minha”. Vou respirar fundo, fechar os olhos um instante, e começar a descer. Mas não agora, Pai, não ainda...

Eu poderia estar ainda mais amedrontada e nervosa que já estou, se não fosse pelos maravilhosos e verdadeiros amigos que tenho. Um deles, iluminado, me presenteou com o lindo texto que transcrevo abaixo, com todos os agradecimentos. Dennis, meu anjo de guarda, meu amigo, obrigada. Foi mais que um apoio, foi uma Graça.

Tudo é impermanente, do beijo ardente à dor de dente!

Se o beijo ardente durasse mais do que dura, ele não seria prazeroso – seria um desconforto a mais nesta vida de meu Deus; se a dor de dente não cessasse - mercê da ação do dentista ou da própria morte do nervo enfermo - ela conduziria sua pobre vítima à loucura, ao suicídio, ou a ambos. Em oposição à dor, existe o prazer, mas notem: também os prazeres existem em função de sua própria impermanência, dependem dessa impermanência, assim como todos nós, seres vivos que caminham sobre a Terra, dependemos do ar para viver. Tentem imaginar um prazer que não se acaba; pronto, deixou de ser prazer!

Não é reconfortante pensar que José Sarney não é eterno? Ah, que pensamento risonho! Já imaginaram gerações e gerações de marimbondos de fogo a nos perseguir, ou infinitas linhagens de Saramindas a nos cutucar com seus duríssimos mamilos de ouro 18 quilates? Que pesadelo! Já pensaram na hipótese de uma eternidade desdobrada à nossa frente... na qual vivêssemos a ouvir e a ler as ‘ definitivas certezas’ de jovens presunçosos, quase todas (essas ‘certezas’) frutos de precipitações intelectuais, de vaidades e de oscilações hormonais? Que inferno! Por isso, se existe uma lei que possa ser chamada de justa e de piedosa, tal lei é a da Impermanência de Todas as Coisas Havidas, Sabidas e Pressentidas.

Quem amaria plenamente a vida, desconhecendo sua intrínseca finitude? Quem cuidaria zelosamente do amor, sabendo-o uma conquista definitiva? Quem se disporia a filosofar, a buscar respostas, a colher ou produzir saberes, certo de que tudo pode ser deixado para ‘mais tarde’, para ‘depois’?

Se a felicidade humana é possível, meus caros, isto se deve – em grande parte - à Lei da Impermanência. Se podemos nos fortalecer na fé (ou em sua negação) ou nos auto-analisar com as medidas e os pesos justos da humildade, isto tudo também se deve à Lei da Impermanência. A impermanência nos traz o alerta da transformação e da finitude (tudo muda, tudo morre, tudo se acaba tal como é), e a consciência de que existem essas tranformações e finitudes nos recoloca bem depressa em nosso verdadeiro lugar. Não fora a Impermanência de tudo, os admiráveis filósofos estóicos não poderiam ter concebido seu mundo de traqüilidade, simplicidade e indiferença emocional (ah, como os invejo!).

Cedo ou tarde, amigos, o inimitável sorriso da Gioconda há de retornar ao pó; se hoje gargalhamos com os periquitinhos verdes, amanhã ou depois talvez necessitemos de medicamentos antidepressivos para sobreviver entre os corvos que dizem ‘Nunca mais!’; o que somos hoje, tal como nos percebemos ou somos percebidos pelos outros, não perdurará além da próxima aurora. O dia seguinte sempre nos traz surpresas de autodescobrimento (desde que tenhamos olhos de ver).

Agora eu quero opinar a respeito das verdades que moram em cada um de nós. Não o farei de forma elevada ou profunda, tampouco pretendo construir um filosofema. Direi simplesmente o que penso... com tosca sinceridade.

Cada homem – creio agora - carrega em si verdades de três tipos diferentes: as verdades da razão, as verdades do coração ou do espírito e as verdades do rego da bunda. Todas as três são mutáveis, portanto impermanentes. Todas elas são caramelos que se dissolvem na bocarra de Chronos, o Senhor do Tempo, mas as verdades do terceiro tipo são as que mais fedem, as que mais danos causam, ainda quando apoiadas em fatos irrefutáveis. As verdades do rego da bunda são aquelas que adoram saltar para o bico dos sapatos e nos chegam sempre com a baixeza de um chute no saco. Elas não são ditas para trazer luz, não, não, ou para ironizar com graciosidade, ou para desconstruir falsos mitos; elas são ditas para causar dor, e ponto.

Consola-nos saber que, físicas ou morais, todas as dores são impermanentes. Também o são as tantas ilusões que criamos para emoldurar certos amores e certas amizades cuidadosamente idealizadas. Assim é; é bom que assim seja. O que seria um sonho feliz que nunca se acabasse, senão o retrato mais perfeito do tédio?

Quem não achar que a lei da impermanência é justa... queira encaminhar suas reclamações ao bispo, mas – por favor – escolha um bispo que creia em Deus (eles ainda existem algures) e possa conduzir suas reclamações ao Altíssimo. Outra coisinha: o Altissimo só responde a quem tem ouvidos de ouvir; não basta ter língua de falar, pena de escrever e botinas de chutar. Aliás, com os pontapés dos surdos (impiedosos)... o rouxinol não canta, a bailarina não dança, nem a galinha bota ovo!

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