A faxina continua. Só que agora, a lavagem da alma e da sala da borboleta está sendo feita com lágrimas. Elas não param de escorrer, e vão levando na enxurrada todos os sentimentos ruins, as coisas guardadas, as velhas dores. A alma e a sala vão ficando lavadas, limpas, renovadas. Tudo segue na enchente que Ele causou. Ah, Carneirão, porque tivestes de morrer?
Estou tentando lidar com a situação, de verdade. Num canto da sala, no mais protegido deles, armei um pequeno memorial, onde coloquei um lindo vaso com rosas, presente do meu amigo Dennis, a foto de suas covinhas e de seu sorriso brilhante, uma miniatura de um veleiro e a oração mais bonita que encontrei. Iluminando tudo, uma lamparina cheia de óleo aromático. Assim eu pensava que poderia tê-lo perto de mim, sentir menos sua falta.
De repente, sinto uma presença na sala, bem atrás de mim. Surpresa, mas não assustada, pois nada de mal pode me atingir aqui, eu me virei. Dei de cara com o Carneirão. Ele me fitava sério, mas com um sorriso no olhar. Ao vê-lo ali, meu coração parecia que ia arrebentar de tanta tristeza. Não sei o que eu esperava fazer, dizer, de que modo pensei que agiria ao vê-lo assim, diante de mim, cheio de luz. Certamente não esperava ficar com tanta raiva. Mas fiquei mesmo cega de raiva, e falei por entre dentes, enquanto uma única lágrima zangada me descia pelo rosto:
- Carneiro fujão! Malvado! Que coisa feia, um homem tão educado, partir sem dizer adeus! Não teve pena de um único amigo seu!
- Ah, Butterfly, disse ele baixinho. Justo minha borboleta de asas azuis me acusar assim? E logo agora, que venho despedir-me, quase fugido? Sabes que tenho de partir... mas mesmo assim vim dizer adeus a ti, e brigas comigo.
O olhar dele desmanchou minha zanga. Eu já não conseguia segurar as lágrimas, que desciam ainda mais fortes. Pelo prisma do pranto, ele faiscava coberto de mil e um arco-íris, como se estivesse vestido de diamantes e sob uma forte luz. E vi que ele agora sorria, mas os olhos estavam tristes. Tentei segurar o pranto, ser mais positiva a respeito de tudo, afinal ele estava ali, e eu podia ver que estava bem. Mas só conseguia chorar e balbuciar, sentida:
- Você vai mesmo embora...
- Vou. Deram-me de presente este lindo veleiro, não podes vê-lo de tua janela?
Com efeito, lá estava ele. Faiscava ainda mais que o dono, era uma jóia pendurada no pescoço do céu. Lindo, mágico. Fiquei muda de espanto a contemplar aquela beleza toda.
- Vês, borboleta, porque não posso ficar? Consegues imaginar os oceanos que vou cruzar com esta belezura, carinho?
- Só vejo o vazio da minha vida sem você, Carneirão...
O olhar dele era todo censura agora. Nenhum sorriso nos olhos, a boca fechada em uma muda reprovação. De uma só vez vi o tamanho do meu egoísmo, enxerguei pelos olhos dele a injustiça que eu cometia, sem pensar. Baixei os olhos, envergonhada. Respirei fundo, enxuguei as lágrimas com as costas da mão, bastante sem jeito.
- Desculpa, querido... não estou pensando direito... foi tudo tão de repente... Fico o tempo todo pensando que nem um único beijo ou abraço eu pude dar... eu estou entalada com o afeto que não posso mais dar a você. E você vai para longe agora.
Finalmente, ele sorriu com os lábios e os olhos ao mesmo tempo. O efeito foi tão devastador que fechei os meus olhos, não podia suportar aquele brilho. Comecei a sentir uma leveza e uma tontura estranhas. Escutei a voz dele, de longe, dizendo que mantivesse os olhos fechados. Eu senti que ele me abraçava. Não consigo descrever a sensação daquele abraço, a não ser que parecia que todas as coisas boas do mundo tinham se enroscado em mim ao mesmo tempo. Senti um toque muito leve em minha testa.
Devo ter me perdido no desfrute daquele abraço porque, quando dei por mim, já não havia outra pessoa na sala, e pela janela podia ver o veleiro se afastando e lentamente virando uma estrela um pouco mais brilhante que o resto.
Olhei em volta, desnorteada, e percebi que o pequeno memorial estava diferente. No lugar das rosas naturais e do veleiro de madeira, agora havia flores e barco de um cristal tão branco, tão delicado, que não me atrevi a tocar. Junto ao vaso, um bilhete com uma letra que eu não conhecia, mas sabia a quem pertencia. A mensagem era curta:
"Seja feliz, Borboleta amada. Beijos, Alex."
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