O Unicórnio e o Caçador (Parte II)
Ele não era caçador por gosto. Pelo contrário, tantas vezes o olhar de suas presas, enquanto sucumbiam, era rememorado em noites longas de insônia. Ele não era caçador por prazer, era por necessidade, e era dos melhores. Ele era um caçador moderno, um “executivo”, e caçava outros de sua espécie.
Em sua infância e juventude ele possuíra um espírito sensível como poucos, e isto era a causa de brigas constantes entre seus pais e ele. “Pare de sonhar, menino!” “Esta história de ficar em casa lendo romances já foi longe demais! Vá lá fora jogar bola!” A ladainha não tinha fim. Ele insistira com seus pais e tivera aulas de piano, mas o sonho de ser um concertista foi podado na raiz: “Música clássica uma ova! Isso é coisa de boiolinha! Você vai trabalhar na empresa do seu pai, e você sabe disso. Vá estudar administração. Piano é um bom hobby, elegante e refinado. E só.”
Com o passar do tempo, sua sensibilidade foi recoberta com camada após camada de cinismo, e ele descobriu que tinha uma armadura ao invés de uma alma. Por dentro, oco. Por fora, duro como uma rocha. Foi o primeiro de sua turma de administração, e levou a empresa de seu pai a um sucesso que nunca tivera. Ele era rico, famoso, conhecido como empresário impiedoso. Quanto mais impiedoso era, mais a sociedade o incensava e caía a seus pés, e mais ele se odiava.
Como uma espécie de autoflagelação, ele caçava também animais selvagens. Cada um deles que morria em suas mãos era uma faca cravada em seu coração, era mais um fantasma a percorrer o deserto da sua alma. Era como ele se castigasse pela traição à sua natureza verdadeira, matando a natureza a seu redor. E ele era bom neste tipo de caçada também. Caçara animais de todos os tipos, em todos os continentes. Tinha uma sala de troféus em sua casa, onde colocara seu piano. Enquanto ele tocava, os animais o fitavam com seus olhos de vidro. Vazios, como sua alma.
Ele caçava, e não sabia porque caçava, mas sabia que tinha que continuar caçando. Caçou uma linda mulher para ser mãe de seus filhos, caçou para eles as melhores escolas. Mas era um marido de coluna social e um pai de porta-retratos. Sua mulher e seus filhos não conseguiam furar a armadura, e não desconfiavam do deserto que havia lá dentro. A esposa se conformara com a vida de enfeite, e as crianças com a orfandade. Ninguém estranhava mais. Só ele sofria. E quando a dor estava a ponto de o destruir, ele ia para a sala de troféus e tocava piano. Ou partia para o mato para caçar.
Foi tocando piano no escuro, de madrugada, numa noite de lua cheia, que ela o encontrou pela primeira vez. Ele não a viu, a claridade da lua a escondia. Mas ela viu a morte nas paredes, e o tormento em sua música e em seus olhos. Ela entendeu que ali estava alguém que via a morte como ela. Alguém que entenderia quem ela era e o que ela queria. E o unicórnio decidiu que este seria o caçador que a abateria.
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