23.11.04


O Outro



Tem vezes que a paixão invade, e o que se sente é mais importante do que o que se faz. Tem vezes que a carência invade, e o que se precisa é mais importante que o que se diz. Tem vezes que o medo invade, e o que se teme é maior que o que se vê.

Mas quando o amor invade, e toma conta, e preenche todos os espaços, o medo que se sente é o de ferir a quem se ama. A carência que ameaça é a que podemos não ser aquilo que o amado precisa. A paixão desbota e cai no chão esquecida, empalidecida pela imensa alegria de saber que você está aqui.

O que surge é este outro que existe independente de mim, diferente de mim, vibrando em sintonia comigo, e cuja mera presença dá a mim satisfação espiritual maior que mulheres com mais casca apenas vislumbram na paixão física mais intensa.

Não há paixão que me dê o que você me dá. Não há medo ou carência que me impeça de dizer o que eu sempre digo e que ninguém jamais te disse: minha mente, minha alma, meu afeto, meu trabaho e minha vida estão aqui, a serviço do que para mim é mais precioso que todo o ouro de Salomão - sua felicidade.

(Hoje, olhando com cuidado o post, cheguei à conclusão que a citação tinha de ser um pouco maior, pois assim pequenina não explica tudo. Lá vai mais Corção então...)

"Somos pobres do outro; como se o sangue das veias não nos bastasse e fosse urgente trocá-lo, numa transfusão quente e viva, de coração para coração. Precisamos do outro, para o fazer comum, para a obra, sem dúvida alguma; mas muito mais para o uso comum da palavra e do trigo. Precisamos do outro para construir cidades e para ouvir um disco. Para ler livros escritos, e para ter leitores dos livros que escrevemos. Para tudo; e para nada. Para andar o mesmo caminho, à toa; para estar ao nosso lado, em silêncio. Pelo calor da proximidade, pelo conforto da compreensão. Precisamos da esmola do outro; da esmola viva, dele mesmo, como é, outro e próximo.

Quando vamos andando nas ruas, no meio da acabrunhante solidão das ruas, e vemos surgir de repente entre ombros e cabeças alheias a velha face conhecida, a boa face amiga, o tempo pára e nosso coração se aquece. É bom ver o rosto do amigo; já não estamos sós. O antigo susto que desde a infância nos persegue, medo de escuro e de solidão, se desfaz quando encontramos o amigo.

Somos pobres, fundamentalmente pobres, de carne e de espírito. Pobres como as criancinhas que morreriam de fome e de medo, se o mundo não fosse para elas um jardim cheio de mãos.

(...) Bendita seja nossa pobreza, e benditos os ombros que encontramos para nos servir de muleta!"


(Gustavo Corção, A Descoberta do Outro, ps. 118/119)

1.11.04




Sonho de rosas



Hoje à noite tive um sonho. Neste sonho estava num jardim, num pequeno canteiro, com antigas roseiras. As roseiras estavam cheias de botões, mas sufocadas pelas folhas mortas, seus galhos emaranhados como por forte vento, a terra ressecada. Que dó me deu ver aquelas veneráveis roseiras abandonadas assim.

Lá fui eu, vagarosamente separei os galhos emaranhados, retirei uma a uma as folhas mortas que ainda estavam penduradas nos galhos, varri o chão, reguei, dei uma remexida na terra do canteiro, coloquei terra nova e adubada por cima. Recolhi o lixo todo, me preparava para levar tudo para um depósito qualquer, quando uma voz me avisou: “Sue, olha...”

As três roseiras – eu disse que eram três? – estavam vivas, vibrantes, desabrochadas. A mais próxima de mim, à minha direita, tinha rosas amarelas, de um amarelo tão intenso que mais pareciam douradas, umas rosas sem espinho, lisas, que abriam como pequenos cálices de ouro. As rosas pareciam me dizer “somos a Amizade”.

No canto mais distante de mim, uma roseira de rosas malva, cor de aurora. Suaves, mais miúdas que as outras, desabrochavam em pequenos cachos de manhã. Como criancinhas rosadas, estas rosas me diziam, em coro, “somos os Dons da Alma”...

No canto esquerdo, a maior roseira de todas. Ameaçadora com seus espinhos – fôra a que dera maior trabalho para limpar, como os arranhões em minhas mãos podiam atestar –, eu podia ver que, nela, o trabalho ainda não estava terminado. No entanto, sua resposta aos meus cuidados era ainda mais generosa que a das outras duas. Rosas rubras, enormes, abertas como imensos cataventos sanguíneos, me olhavam silenciosas. Não me diziam o que eram, mas quando eu perguntei seus nomes, elas apenas me perguntaram o que eu pretendia plantar no canto que estava vago, bem à minha frente.

Repentinamente percebi que havia um toco morto diante de mim. Eu olhei para a roseira-sangue, e já que ela não me dizia o que ela representava, perguntei que roseira era aquela que jazia morta ali. As flores da roseira desabrocharam ainda mais, e responderam, pesarosas: “Esta é a Paixão. Ela morreu faz pouco tempo”. Olhei para a roseira morta, e entendi a pontada que senti no peito ao olhar para aquele tronco seco. Comentei em voz alta e um pouco embargada que não tinha ferramentas para arrancar aquelas raízes profundas.

“Escolhe uma muda e deposita no côncavo que você vê em cima deste toco“, foi a resposta. Dei conta que havia uma bandeja de mudas, bem ao alcance da minha mão direita, e eram todas jovens roseiras das mais variadas cores. Intrigada, examinei todas. A que me chamou mais atenção foi uma muda que possuía uma única rosa branca.

Branca? Não exatamente. As bordas de suas pétalas tinham cores diferentes, fios coloridos em suas pontas. O centro do botão tinha este arremate em amarelo bem clarinho, e as cores iam ficando mais vivas à medida que as fieiras de pétalas se aproximavam da parte de fora, passando do laranja para o rosa-chá, para o rosa claro e o rosa profundo, chegando ao arremate de um vermelho muito parecido com a da roseira rubra. Parecia uma rosa que continha todas as outras rosas dentro dela. E o branco era de uma perfeição aveludada que me encantou, nem esverdeado nem amarelado, como algumas vezes costumam ser as rosas brancas, mas tinha o branco muito alvo das margaridas.

Silenciosamente retirei esta muda da bandeja e removi o saco plástico que envolvia suas raízes. Ajoelhei-me, depositei com cuidado aquela única rosa branca e sua pequenina roseira no côncavo da paixão morta. Uma coisa extraordinária aconteceu... a pequena muda se fundiu com a antiga raiz e começou a crescer numa velocidade espantosa, até virar uma roseira adulta. Entretanto, a rosa multicor que estava desabrochada, retraiu-se até virar novamente um botão!

Tonta, olhei para as rosas-sangue numa pergunta muda. A resposta veio num doce murmúrio interior:

“Você escolheu o Amor, que é a reunião de todas nós. Mas o amor necessita de dois. Enquanto o segundo não visitar este jardim, esta rosa permanece em botão, e nós seremos suas guardiãs. Mas você não deve deixar de regá-la com suas lágrimas, de adubá-la com seus sorrisos. E de vir nos visitar de tempos em tempos. Precisamos muito destes cuidados seus...”

- Quem SÃO as rosas rubras? perguntei entre assustada e impaciente.

“Quem guarda as amizades e o amor, e distribui os dons da alma?” foi a resposta.

- Ah, é o coração! respondi.

E acordei.