28.1.04




Viagem



Quatro da manhã. Apesar da escuridão da noite, estou inebriada de luzes. Das luzes das grandes velas perfumadas dispostas de modo elegante numa bandeja à minha frente. Da quantidade de pequenas luzes da cidade que eu vejo dispostas abaixo de mim, da janela do décimo-quarto andar. O jogo de sombra e luz. As velas bruxuleiam, as luzes das antenas piscam ritmadas: 1-2-3, 1-2-3-4...

Impera um silêncio urbano, que é mais um sossego que uma ausência de som. A cidade ressona, e a chuva que me recebeu na chegada continua intermitente, sem nunca cessar de todo. A chegada da luz do dia torna a cidade um gradiente que vai do cinza-grafite do asfalto ao cinza-concreto dos prédios ao cinza-prata das nuvens carregadas até o branco forte e sem sutileza da luz. O dia e a noite entram e saem de repente, sem a despedida colorida de uma aurora ou entardecer.

É uma cidade grave, mas que não deixa de ser gentil. Não me pesa nos ombros como faz o Rio algumas vezes, mas se planta firme sob meus pés. Tem suas rudezas inconscientes, e suas ingenuidades, tem os encantos desastrados do jovem tímido, uma urbe gigante que enrubesce com a paquera descompromissada da visitante carioca.

Em torno de mim estão pessoas graciosas, e os momentos passsam suaves, com o murmurejar da chuva que cai, dos carros que passam lá embaixo, ao som de Andreas Vollenweider e Bach e Ella Fitzgerald. As amizades que fiz e revisitei aqui são sólidas como o aço e o concreto dos edificios -- e acredito que ainda mais duradouras que estes.

Predios. Carros. Gente. Lojas. Bares.

Movimento constante, de e para todos os lugares.

Sim, meus amigos, estou em São Paulo.

24.1.04




Pureza e Inocência



Um homem maduro. Só, absolutamente só, cujo único amigo era uma planta num vaso. Um homem que sobrevivia como uma criança no corpo de um matador profissional. Uma casca de dor em torno de uma alma pura. Um corpo doído, ferido, marcado, treinado para matar. Olhos de menino em dia de Natal ao assistir Gene Kelly dançar no cinema vazio.

Uma criança. Uma menina de 12 anos de idade. Linda como um camafeu, filha de pai traficante de cocaína e mãe alcoólatra e prostituta. Espancada. Espoliada de seus sonhos e da sua inocência. Uma mãezinha de faz de conta do irmãozinho, escapava para um mundo de faz de conta sempre que este se tornava dolorido demais. Perdida, esquecida, abandonada por tudo e por todos, fumava e balançava suas pernas penduradas no vão da escada.

Como eles conseguiam sobreviver era um mistério. Mas sobreviviam. Até que encontram um amor. Sim, um amor. O primeiro amor de suas vidas. Um amor de duas crianças à deriva num mundo mau. Um amor desconfiado, a princípio. Mas a maldade de que estavam cercados os atira de encontro um do outro, e eles descobrem que realmente se amam.

Mas ela tem DOZE ANOS, gritarão alguns. Ela tem milênios de anos de dor e de abuso e de desencanto, digo eu. E ele foi a única gentileza que ela jamais conheceu. E ele é só, só de enlouquecer, iletrado, simples como o camponês italiano que verdadeiramente é. E ela foi a primeira beleza verdadeira em sua vida. É um amor sem beijo, porque nenhum dos dois sabe beijar. Um amor sem sexo, porque nenhum dos dois equaciona sexo com amor.

Ao tentar matar o policial que matou toda sua família, a pequena faz desabar sobre eles toda a ira de Hades. Ele luta por ela como um gigante, mas que homem vai ganhar sozinho de um exército? Presos num edifício, com o céu caindo por sobre suas cabeças, apenas conseguiu fazer um pequeno buraco para que ela pudesse escapar. Ela, não eles. Ela sabe e ele sabe que vai ser trucidado. Ela não quer ir, de que adianta viver num mundo seco, ainda mais árido depois de provada a doçura do amor?

Ele fala todas as mentiras bondosas destes momentos: “vá, eu encontro você lá, juntos morremos com certeza, separados temos uma chance...” Ela sabe que é tudo mentira, mas deixa que ele a convença, porque sabe que é inútil, tão inútil. Num último momento ela faz um suave movimento para frente, lábios entreabertos que pedem “beija-me ao menos agora, esta última vez”. Ele não beija, coloca sua mão sobre a dela e faz um carinho, e aperta com força. Naquele microsegundo ela cresce, torna-se mulher, eles casam têm filhos e sentam calmamente no sofá para assistir a tevê até ficarem bem velhinhos, juntos.

Toda uma vida vivida num microsegundo. Depois, lágrimas e um urro de dor que fez todas as almas do purgatório gemerem em simpatia. E morte e mais abandono, e mais uma vez ela está sozinha num mundo muito hostil. Mas agora ela carrega um vaso de planta e a semente de um verdadeiro amor.

Acabei de assistir a um filme. Um filme que me colocou no chão. “O Profissional” com Jean Reno.


Le ciel dans une chambre ( Carla Bruni)
Quand tu es près de moi,
Cette chambre n’a plus de parois,
Mais des arbres oui, des arbres infinis,
Et quand tu es tellement près de moi,
C’est comme si ce plafond-là
Il n’existait plus, je vois le ciel penché sur nous...
Qui restons ainsi,
Abandonés tout comme si,
Il n’y avait plus rien, non plus rien d’autre au monde et
J’entends l’harmonica... mais on dirait un orgue,
Qui chante pour toi et pour moi,
Là-haut dans le ciel infini,
Et pour toi, et pour moi.


Il cielo in una stanza (Gino Paoli)

Quando sei qui com me
Questa stanza non ha più pareti
Ma alberi, alberi infiniti
E se tu sei vicino a me
Questo soffito, viola, no,
Non existe più, e vedo il cielo sopra noi.
Che restiamo Qui, abandonatti come se
Non ci fosse più niente, più niente al mondo.
Suona larmonica, mi sembre un organo
Che canta per te e per me
Su nell’immensità del cielo
E per te e per me.

O céu no quarto (Assunção Medeiros)

Quando estás comigo aqui
O quarto não tem paredes
Mas árvores, árvores infinitas
E se estás bem junto a mim
Este teto some, não,
Não existe mais, e vejo o céu sobre nós
Que pousamos aqui, abandonados assim
Como se não houvesse alguém mais no mundo.
Soa uma harmônica, me lembra um órgão
Que canta por ti e por mim
Sobre a imensidão do céu
E por ti e por mim.

18.1.04




Adeus



Ela era feita do vento que elevava as almas dos místicos. Ele era feito do fogo que queimava no coração dos poetas. Quando se encontraram, as faíscas que voaram da colisão direta criaram cada uma seu universo. E eles ficaram a rodar um em volta do outro, cada um ao mesmo tempo satélite e astro-rei.

Acontece que fogo e vento não conseguem ficar muito tempo juntos sem que o fogo queime todo o vento ou sem que o vento apague todo o fogo. Logo, eles deram mil passos atrás e mantiveram uma distância segura, mas ainda assim bailavam lentamente, num compasso paralelo, um sem tirar os olhos do outro.

Mais uma vez, no entanto, as suas naturezas os traíram. O vento sopra onde quer, o fogo só existe onde há combustível que o alimente. E o fogo achou sua brasa e o vento encontrou sua elevada solidão. Ele queima mais tranquilo, sem a espora do amor dela; ela voa mais calma sem o calor do toque dele. Mas há dias em que ela lembra como era fazer voar em todas as direções as labaredas dos seus cabelos. E ela sabe que, de longe, ele lembra também da fria exaltação do seu afago.

É duro, muito duro, quando a estrada finda sem que o amor acabe. Eles sabem melhor que ninguém. E sabem – ela sabe e ele sabe – que o vento agora sopra mais quente, pois leva consigo um coração de labareda; e o fogo queima mais forte em torno do seu novo coração de vento.

A brasa, totalmente alheia, incandesce na mais perfeita paz.

17.1.04






Poemas e Alfazemas



Quando se conhece uma pessoa como Jules, deve-se fazer algum tipo de oferenda. Não aos espíritos afro-brasileiros, mas a uma musa. Eu pensei, cá com meus botões de madrepérola, qual a melhor oferenda a se fazer a uma musa por um poeta goitacás? Enquanto eu debatia comigo e meus botões, ele mesmo me deu a resposta.

Chuviscos e poesia!

Da série .......... : brincando com rimas - Jules Rimet

Ninguém lê poemas
sem rimas e alfazemas.
Façamos então um perfeito
que agrade até ao prefeito.
Cheio de anjinhos e cores,
com molhos de mil sabores.
Um poema que se deguste
mesmo que tal trabalho custe
uma vida de técnica apurada.
Façamos uma arte marinada,
com cheiro de cozinha, temperada;
uma poesia doce, outra salgada;
uma que sirva de entrada,
mas que vá se tornando,
à medida que o tempo vá passando,
no prato principal.
E para agradar ao comensal
façamos um poema-sobremesa
de claras e anilina; com certeza
agradará também olhar a cor
e, decerto, a forma de dispor
os versos e a cadência:
um poema cozidinho, com ciência.


De preferência um poema mastigado
pra que não soframos o azar
de o leitor vir a se engasgar
e ficar com o poema atravessado."

12.1.04






Sentimentos



Queridos amigos, hoje é meu aniversário. Completo 39 anos, e começo a caminhada em direção aos 40. E não gostaria de ter outra idade. Sou muito mais feliz hoje que aos 29, e infinitamente mais feliz que aos 19. Espero poder manter a mesma progressão em relação aos 49. Se tudo continuar desta forma, meus 89 anos serão maravilhosos!

Mesmo assim, a alegria que tenho com aniversários (gosto deles tanto quanto o Chapeleiro Louco da Alice gosta de desaniversários) vem mesclada com um sentimento de tristeza... que não é bem tristeza, eu não sei como explicar... Mas descobri estes dias num livro uma pessoa que sabe. Uma pessoa que descreveu a chegada de uma carta com os mesmos sentimentos que tive ao receber hoje um cartão especial... ainda mais especial porque não era esperado.

Bem, abusando da escritora Clarisse Lispector, o post de aniversário da Sue vai ficar por conta dela, enquanto eu sento num cantinho e -- já que não posso colocar um cartão eletrônico junto ao peito -- escuto meu coração bater.

Parabéns para mim!

"[A Elisa Lispector e Tania Kaufmann]

Lausanne, 13 de julho de 1946

Elisa, Tania,

escrevo de Lausanne, sentada ao parapeito do lago Leman. Perto tem uma orquestra com uma mulher tocando violino, uma marcha meio valsa, meio militar. Junto tem um hotelzinho estreito chamado Hotel du Port. Há montanhas a pique na outra margem do lago. Há uma fontezinha dividida em três ramos sobre uma bacia de pedra. Há uma criança comendo um biscoito Uma mulher de chapéu branco num barco. Vocês quase que podem adivinhar que é sábado de tarde. O lago é de água doce e tem um cheiro gostoso de água. O lago é enorme e transparente. Junto de mim é esverdeado. Mas do meio para o fim está da cor do céu e a montanha mesmo está da cor do céu. Hoje à noite vai ter uma festa noturna no lago, sobre um barco. No banco está sentada uma mulher com o chapéu preto e fita branca enterrado até os olhos como em 1920 e tanto, lendo jornal. Isso que eu estou sentindo pode-se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor. Compreendo que ontem em Berna, quando recebi carta de vocês, ficasse tão aflita. Talvez fosse de alegria -- e de não poder dar esta mesma alegria naquele mesmo instante. Um momento muito forte como o de ontem sempre arrasta tudo para ele: arrastou todos os meus pecados que Deus não precisa castigar, porque neles mesmos vem o castigo. Pecado de egoísmo, de indecisão, pecado de deixar morrer gente de fome e comer, pecado de não entender o mundo, pecado de amar demais, pecado de não saber amar. Vi um filme idiota onde o rapaz dizia: eu gosto de você. E a moça dizia: eu sei, mas não gosto do jeito pelo qual você ama as pessoas. Eu sei, é preciso dar muito mais do que dou. É também de minha natureza carregar nos ombros a culpa do mundo. Se todos sentissem isso talvez saísse um novo mundo. Uma pessoa só pode apenas sucumbir. Foi isso que fiz chorando no cinema e aliviando uma mágoa confusa. O início disso tudo foi a carta de vocês que eu botei junto do coração para sentir o calor dela e dormi assim, e mesmo agora, sentada junto do lago, tenho a carta na mesma posição, com o envelope me arranhando um pouco. Não incomoda, é como um aperto de mão um pouco mais forte. Agora tem um passarinho se aproximando da fonte. E dois meninos passaram, me olharam e continuaram a falar em francês. Fomos há pouco ver uma exposição de pinturas holandesa, de Van gogh para cá. Eu estava vendo pacificamente com a cabeça. De repente vi um pequeno quadro Vers le soir, de um pintor chamado Karsen. Entendi muito bem o que você disse, Tania, sobre a paisagem que se misturou com você. Esse quadrinho finalmente me dominou. É uma casa no cair da noite. Não posso descrever. Tem umas escadas, umas heras, o branco é azulado e tudo um pouco escuro; tem umas estacas -- é um fim de caminho com mato. Gosto de muitas coisas; mas de repente uma coisa é o que a gente está vendo e acima dela não existe mais nada, pelo menos por um instante; não sei se estou me explicando bem.

Toda esta carta foi uma tentativa malograda de tirar um retrato deste lugar junto do lago Leman, porque esqueci de trazer a máquina. E aproveitei a ausência da máquina para tirar o retrato deste momento também. Que Deus abençoe vocês e lhes dê uma alma luminosa. A paz esteja com vocês, minhas queridas.

Clarice."

P.S.: O lindo reloginho de borboleta na coluna da esquerda foi um presente do meu amigo Beto, do Casa de Loki. Obrigada, querido Beto. Estou com muitas saudades de ver seu rosto em sala de aula. Beijos da tia de inglês.

9.1.04






Impressões sobre o fim de um ciclo



Ontem acabou uma viagem que começou a tomar forma em fevereiro de 2003. Ontem também acabou um blog especial, de um amigo especial. Ontem, espero, foi o final de um período de sofrimento para mim, e o início de um ano de produção.

Não sei ao certo o que dizer sobre o que senti de estar estes dias com o Luis Ene aqui no Rio e em Goiânia, exceto que mais uma vez confirmou-se o que eu já tinha percebido em outros encontros com pessoas que conheci na Internet: a presença física é pouco mais que uma ampliação do contato eletrônico. Não tive surpresas, nem boas nem ruins, já que minha expectativa era mesmo de um homem gentil, alegre, amigo, solidário. Posso, no entanto, dizer que ao vê-lo partir senti que um pedaço de mim estava partindo com ele para Portugal. E vai ficar lá.

Agora estou cansada, cheia daquele cansaço feliz que sentimos depois de uma festa onde dançamos e rimos e brincamos a noite toda, porque foi verdadeiramente um momento de celebração estar com meu amigo. Andamos pelo centro da cidade, subimos e descemos pelos morros arborizados do Rio (a floresta estava particularmente bonita, fresca e cheia de borboletas para receber Lord N), fomos a livrarias, a barezinhos e a restaurantes, conversamos, conversamos, conversamos. Agora, no silêncio do meu quarto, fico lembrando e rindo da telefonista carioca que falou conosco em espanhol, sem conseguir entender o cantado lusitano da voz do Luis. Fui também intérprete, de um lado e de outro.

A partir de hoje o objetivo é aproveitar o que me resta de férias antes do início das aulas para tentar organizar o que vai ser o ano. A mente grávida de idéias e projetos precisa agora preparar os caminhos de execução. O corpo precisa voltar à disciplina que impede que o problema de coluna volte a me atormentar. A vida continua num novo patamar.

Luis, querido, espero que sua viagem tenha sido boa e que o retorno à casa tenha sido feliz. Saudades imensas, mas saudades gostosas, porque sei que você também deixou um pedacinho seu aqui comigo. vou cuidar bem dele, prometo.