12.1.04






Sentimentos



Queridos amigos, hoje é meu aniversário. Completo 39 anos, e começo a caminhada em direção aos 40. E não gostaria de ter outra idade. Sou muito mais feliz hoje que aos 29, e infinitamente mais feliz que aos 19. Espero poder manter a mesma progressão em relação aos 49. Se tudo continuar desta forma, meus 89 anos serão maravilhosos!

Mesmo assim, a alegria que tenho com aniversários (gosto deles tanto quanto o Chapeleiro Louco da Alice gosta de desaniversários) vem mesclada com um sentimento de tristeza... que não é bem tristeza, eu não sei como explicar... Mas descobri estes dias num livro uma pessoa que sabe. Uma pessoa que descreveu a chegada de uma carta com os mesmos sentimentos que tive ao receber hoje um cartão especial... ainda mais especial porque não era esperado.

Bem, abusando da escritora Clarisse Lispector, o post de aniversário da Sue vai ficar por conta dela, enquanto eu sento num cantinho e -- já que não posso colocar um cartão eletrônico junto ao peito -- escuto meu coração bater.

Parabéns para mim!

"[A Elisa Lispector e Tania Kaufmann]

Lausanne, 13 de julho de 1946

Elisa, Tania,

escrevo de Lausanne, sentada ao parapeito do lago Leman. Perto tem uma orquestra com uma mulher tocando violino, uma marcha meio valsa, meio militar. Junto tem um hotelzinho estreito chamado Hotel du Port. Há montanhas a pique na outra margem do lago. Há uma fontezinha dividida em três ramos sobre uma bacia de pedra. Há uma criança comendo um biscoito Uma mulher de chapéu branco num barco. Vocês quase que podem adivinhar que é sábado de tarde. O lago é de água doce e tem um cheiro gostoso de água. O lago é enorme e transparente. Junto de mim é esverdeado. Mas do meio para o fim está da cor do céu e a montanha mesmo está da cor do céu. Hoje à noite vai ter uma festa noturna no lago, sobre um barco. No banco está sentada uma mulher com o chapéu preto e fita branca enterrado até os olhos como em 1920 e tanto, lendo jornal. Isso que eu estou sentindo pode-se chamar de felicidade. Só que a natureza se faz tão estranha que o próprio momento de felicidade é de temor, susto e apreensão. É pena que não possa dar o que se sente, porque eu gostaria de dar a vocês o que sinto como flor. Compreendo que ontem em Berna, quando recebi carta de vocês, ficasse tão aflita. Talvez fosse de alegria -- e de não poder dar esta mesma alegria naquele mesmo instante. Um momento muito forte como o de ontem sempre arrasta tudo para ele: arrastou todos os meus pecados que Deus não precisa castigar, porque neles mesmos vem o castigo. Pecado de egoísmo, de indecisão, pecado de deixar morrer gente de fome e comer, pecado de não entender o mundo, pecado de amar demais, pecado de não saber amar. Vi um filme idiota onde o rapaz dizia: eu gosto de você. E a moça dizia: eu sei, mas não gosto do jeito pelo qual você ama as pessoas. Eu sei, é preciso dar muito mais do que dou. É também de minha natureza carregar nos ombros a culpa do mundo. Se todos sentissem isso talvez saísse um novo mundo. Uma pessoa só pode apenas sucumbir. Foi isso que fiz chorando no cinema e aliviando uma mágoa confusa. O início disso tudo foi a carta de vocês que eu botei junto do coração para sentir o calor dela e dormi assim, e mesmo agora, sentada junto do lago, tenho a carta na mesma posição, com o envelope me arranhando um pouco. Não incomoda, é como um aperto de mão um pouco mais forte. Agora tem um passarinho se aproximando da fonte. E dois meninos passaram, me olharam e continuaram a falar em francês. Fomos há pouco ver uma exposição de pinturas holandesa, de Van gogh para cá. Eu estava vendo pacificamente com a cabeça. De repente vi um pequeno quadro Vers le soir, de um pintor chamado Karsen. Entendi muito bem o que você disse, Tania, sobre a paisagem que se misturou com você. Esse quadrinho finalmente me dominou. É uma casa no cair da noite. Não posso descrever. Tem umas escadas, umas heras, o branco é azulado e tudo um pouco escuro; tem umas estacas -- é um fim de caminho com mato. Gosto de muitas coisas; mas de repente uma coisa é o que a gente está vendo e acima dela não existe mais nada, pelo menos por um instante; não sei se estou me explicando bem.

Toda esta carta foi uma tentativa malograda de tirar um retrato deste lugar junto do lago Leman, porque esqueci de trazer a máquina. E aproveitei a ausência da máquina para tirar o retrato deste momento também. Que Deus abençoe vocês e lhes dê uma alma luminosa. A paz esteja com vocês, minhas queridas.

Clarice."

P.S.: O lindo reloginho de borboleta na coluna da esquerda foi um presente do meu amigo Beto, do Casa de Loki. Obrigada, querido Beto. Estou com muitas saudades de ver seu rosto em sala de aula. Beijos da tia de inglês.

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