29.1.07

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Fim da Missão



(Discurso que infelizmente tive de proferir
na cerimônia de cremação de meu pai)

Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 2007.

Amigos:

A presença física de meu pai entre nós se encerra definitivamente hoje. O corpo dele logo estará transformado em cinzas. Ele não vai ter uma lápide em nenhum cemitério. Não vai haver restos mortais dele em lugar algum. Eu, conhecendo meu pai, acho isto muito bom. Mas a ausência de corpo não impede que seu espírito seja lembrado e, ao sentar para escrever estas palavras, o que mais me preocupava era justamente escolher, numa vida longa e cheia de acontecimentos, o que pedir a seus amigos, aqui presentes, para lembrar.

Muitos de vocês o conheceram bem antes de eu nascer. Vocês têm lembranças de um jovem que eu não conheci, do qual escutei muitas histórias. Eu tenho as lembranças do afeto, da vida em comum, do pai. Outras pessoas aqui têm a lembrança do homem forte que ele foi ao lutar contra uma doença traiçoeira e malvada. Para alguns ele era o Gordo, para outros o Brizola, ou ainda o Mederix. No HFAG o Brig. Medeiros misteriosamente virou “Seu Roberto”.... Ele era muita coisa para muita gente, como reunir numa só lembrança todas as facetas deste homem?

É difícil, tenho certeza que mesmo que ficássemos aqui muito mais que meia hora não conseguiríamos um denominador comum. Cada um de nós tem as suas lembranças e as impressões pessoais que ele deixou. Durante o tempo que tive para pensar desde sua morte sexta de manhã, no entanto, descobri duas coisas que são para mim muito importantes a respeito de meu pai, e que queria dividir com vocês. A primeira, a que deixou a impressão mais forte na minha alma, é que ele era um guerreiro.

Meu pai me ensinou a vida toda a ser forte, a ser justa, a nunca abusar dos mais fracos e a sempre defender o que era certo, mesmo às custas da simpatia alheia. Esta força que foi meu exemplo veio de sua personalidade, é certo, mas veio também do fato muito especial e de que muito me orgulho: ele era um militar e era um aviador. Meu pai me ensinou a respeitar a força, e o convívio dentro da FAB me ensinou que ele e seus companheiros de farda eram pessoas especiais, feitas de estofo diferente dos “paisanos”.

Os aviadores não têm trabalho, eles têm missões. Eles não têm colegas de trabalho, têm a turma de irmãos. Brigam juntos, voam juntos, casam juntos, criam seus filhos juntos, estão juntos com os filhos quando é hora de dizer adeus a um irmão caído.

A força de espírito de meu pai era a comissão de frente da sua personalidade, mas ele tinha um outro lado, extremamente cativante, que ele deixava entrever àqueles que conquistavam sua confiança e amizade: meu pai era um menino gaiato, cheio de humor e de alegria, brincalhão, capaz de fazer graça dos amigos e de si. Mesmo no final de suas forças ainda achava energia para encontrar apelidos para as enfermeiras que contratamos para cuidar dele em casa.

Ele enfrentava a vida, na maior parte do tempo, como se ela fosse uma grande traquinagem. Ele sabia encontrar o que havia de engraçado nas situações, e sua risada estrondosa, solta, de chacoalhar os ombros, ainda soa na minha memória. A força e a alegria de meu pai é o que quero deixar na memória de todos que vieram aqui se despedir dele, nesta cerimônia simples que era o que ele queria, sem honras militares, pois ele afirmava que não ia proporcionar uma festança destas a outros, quando estivesse impedido de participar dela.

Meu pai gostava muitíssimo do filme All That Jazz, onde na cena final o personagem principal do musical dá seu adeus a todos deste mundo e parte ao encontro de uma morte linda e loira que o aguarda com um sorriso. Meu pai sempre nos disse que queria encarar a morte dele assim, então eu espero que ele tenha encontrado sua loira, e que minha mãe que o aguarda lá no céu não tenha achado muito ruim. Ele achava a cena fantástica e a música Bye Bye Love sensacional. Não foi possível tocar aqui a música que trouxemos, por razões técnicas. Quem quiser, pode buscar escutar a música e dar seus bye byes internos ao Medeiros. Bye bye, meu pai.

Ao final, eu peço a vocês que fiquem de pé por um momento, e honrem todos os aviadores presentes escutando – e cantando, aqueles que o conhecem - o Hino do Aviador:

Hino do Aviador

Vamos filhos altivos dos ares
Nosso vôo ousado alçar,
Sobre campos cidades e mares,
Vamos nuvens e céus enfrentar.

D'Astro-Rei desafiamos nos cimos,
Bandeirantes audazes do azul.
Às estrelas, de noite, subimos,
Para orar ao Cruzeiro do Sul

Contacto! Companheiros!
Ao vento, sombranceiros,
Lancemos o roncar
Da hélice a girar

Contacto! Companheiros!
Ao vento, sombranceiros,
Lancemos o roncar
Da hélice a girar

Mas se explode o corisco no espaço
Ou a metralha, na guerra, rugir
Cavaleiros do século do aço
Não nos faz o perigo fugir

Não importa a tocaia da morte
Pois que à Pátria, dos céus no altar
Sempre erguemos de ânimo forte
O holocausto da vida, a voar

Contacto! Companheiros!
Ao vento, sombranceiros,
Lancemos o roncar
Da hélice a girar

Contacto! Companheiros!
Ao vento, sombranceiros,
Lancemos o roncar
Da hélice a girar

Obrigada.

8.1.07

Engano



Toca o telefone de manhã bem cedo. Uma voz pastosa atende, e é surpresa por uma voz retumbante de alegria e bom humor artificiais, voz irritante do tipo que só mesmo os profissionais de tele-atendimento conseguem ter:

- Alô...
- BOM DIA! É do Centro Médico Tijuca?

(silêncio)

- Senhora, um momento da sua atenção. Antes de dizer se aqui é o Centro Médico Tijuca, queria fazer umas observações, a senhora se incomoda de escutar?

-Eh...

- Obrigada. Bem, pela minha voz, a senhora deveria ter percebido que eu não poderia estar atendendo um telefone de um centro médico; já que a senhora não parece ter percebido nada, deixe eu lhe dar umas dicas: ontem, às três e meia da madrugada, eu finalmente deitei a cabeça no travesseiro e dormi um sono relaxado, depois de quase duas semanas de sono cortado e um final de semana inteiro como acompanhante no hospital. A senhora está me entendendo até aqui?

- Ahn...

- Isso. Pois bem: o sono para mim é precioso neste momento, pois o câncer de pulmão do meu pai fez metástase no cerebelo (metástase, senhora, é quando um filho da mãe de um tumor resolve abrir franquias pelo corpo) e vai sofrer uma cirurgia de alto risco na sexta-feira que vem, que por falar nisto é meu aniversário; até lá, como o tumor é grande, ele pode sofrer uma morte súbita; se não morrer até a cirurgia, a cirurgia pode matá-lo; se a cirurgia não matá-lo, vamos ter de passar por todo o pós-operatório de uma neurocirurgia; depois disso, precisaremos fazer mais uma rodada de quimioterapia. Portanto, não há previsão de descanso para mim nas próximas semanas, e cada momento de sono é um momento que eu recupero as forças para enfrentar as outras noites mal-dormidas e os dias carregados de tensão que virão. A senhora ainda está aí?

- Uh...

- Ah, sim. Ótimo. Continuando: no entremeio de hospital e de cuidar das coisas da casa, tenho também de cuidar do meu escritório, que está um tanto abandonado por estas razões médicas; no meio disto tudo, administra-se um processo de separação que meu pai resolveu iniciar pouco antes de cair doente. Estou neste ricocheteio entre hospital, cartórios, casa e trabalho por tempo indeterminado. Além disto, tenho de atender os 2.0456.897 telefonemas diários de amigos meus, de meu pai e de membros da família que buscam informações a respeito de seu estado de saúde. Estou virando uma perfeita assessora de imprensa, de tanto que eu concedo declarações a respeito do estado de saúde de meu pai. São boletins múltiplos, de hora em hora, praticamente.

- Ahm, senhora...

- Não se preocupe, estou acabando. Com tudo isto que a senhora ouviu, tão gentilmente, eu agora lhe devolvo a pergunta: aqui é o Centro Médico Tijuca?

- Não, claro.

- Então, senhora, da próxima vez que a senhora for fazer uma ligação telefônica, lembre de mim e olhe os numerozinhos com cuidado, para que a senhora não interrompa tão bruscamente o sono exausto de outra pessoa. Combinado?

- A senhora me perdoe...

- Nah, bobagem, a senhora me deu a oportunidade de despejar na senhora tudo que fica entalado quando outras pessoas ligam para sua casa e ficam irritadas querendo saber “de onde fala”, “quem é”, “qual o número daí?”, como se eu tivesse que abrir minha casa e meu nome a todo estranho que liga para cá. Muito obrigada por sua gentileza.

- Ah, vá para... (a voz irritante se despede com uma batida forte de telefone no gancho).

Olhando para o fone, a voz já não tão pastosa comenta para si:

- É isso aí.

3.1.07

Fio da Navalha

A diferença entre a saúde e a doença pode ser um pedaço de papel.
A diferença entre a esperança e o desespero pode ser uma mão trêmula.
A diferença entre a vida e a morte pode ser um pensamento.

Quando se caminha assim, no fio da navalha, podendo cair de um lado ou de outro, só o que se pode fazer é criar uma "visão de túnel", colocar antolhos emocionais e fazer de conta que nada mais existe no mundo a não ser aquele momento específico. É fazer de conta que aquele engasgo é só um engasgo. É não pensar nas consequências longo prazo de nada.

Na verdade, a diferença entre a sanidade e a loucura é a capacidade de não pensar. Então, peço licença aos queridos leitores do Asa, e aviso que estou numa fase Scarlett O'Hara: "Penso nisso amanhã".

Eu volto, eu volto, não sei como não sei quando. Eu preciso e tenho saudades daqui, mas meu paizinho precisa ainda mais de mim. Beijos carinhosos aos amigos antigos e aos visitantes novos. Vão fuçando por aí, tem texto interessante para todo gosto. A dona da casa vai, de novo, para o hospital. Ainda bem que lá tem um bocado de borboletas, muitas flores.

No resto, eu penso amanhã.