8.1.07

Engano



Toca o telefone de manhã bem cedo. Uma voz pastosa atende, e é surpresa por uma voz retumbante de alegria e bom humor artificiais, voz irritante do tipo que só mesmo os profissionais de tele-atendimento conseguem ter:

- Alô...
- BOM DIA! É do Centro Médico Tijuca?

(silêncio)

- Senhora, um momento da sua atenção. Antes de dizer se aqui é o Centro Médico Tijuca, queria fazer umas observações, a senhora se incomoda de escutar?

-Eh...

- Obrigada. Bem, pela minha voz, a senhora deveria ter percebido que eu não poderia estar atendendo um telefone de um centro médico; já que a senhora não parece ter percebido nada, deixe eu lhe dar umas dicas: ontem, às três e meia da madrugada, eu finalmente deitei a cabeça no travesseiro e dormi um sono relaxado, depois de quase duas semanas de sono cortado e um final de semana inteiro como acompanhante no hospital. A senhora está me entendendo até aqui?

- Ahn...

- Isso. Pois bem: o sono para mim é precioso neste momento, pois o câncer de pulmão do meu pai fez metástase no cerebelo (metástase, senhora, é quando um filho da mãe de um tumor resolve abrir franquias pelo corpo) e vai sofrer uma cirurgia de alto risco na sexta-feira que vem, que por falar nisto é meu aniversário; até lá, como o tumor é grande, ele pode sofrer uma morte súbita; se não morrer até a cirurgia, a cirurgia pode matá-lo; se a cirurgia não matá-lo, vamos ter de passar por todo o pós-operatório de uma neurocirurgia; depois disso, precisaremos fazer mais uma rodada de quimioterapia. Portanto, não há previsão de descanso para mim nas próximas semanas, e cada momento de sono é um momento que eu recupero as forças para enfrentar as outras noites mal-dormidas e os dias carregados de tensão que virão. A senhora ainda está aí?

- Uh...

- Ah, sim. Ótimo. Continuando: no entremeio de hospital e de cuidar das coisas da casa, tenho também de cuidar do meu escritório, que está um tanto abandonado por estas razões médicas; no meio disto tudo, administra-se um processo de separação que meu pai resolveu iniciar pouco antes de cair doente. Estou neste ricocheteio entre hospital, cartórios, casa e trabalho por tempo indeterminado. Além disto, tenho de atender os 2.0456.897 telefonemas diários de amigos meus, de meu pai e de membros da família que buscam informações a respeito de seu estado de saúde. Estou virando uma perfeita assessora de imprensa, de tanto que eu concedo declarações a respeito do estado de saúde de meu pai. São boletins múltiplos, de hora em hora, praticamente.

- Ahm, senhora...

- Não se preocupe, estou acabando. Com tudo isto que a senhora ouviu, tão gentilmente, eu agora lhe devolvo a pergunta: aqui é o Centro Médico Tijuca?

- Não, claro.

- Então, senhora, da próxima vez que a senhora for fazer uma ligação telefônica, lembre de mim e olhe os numerozinhos com cuidado, para que a senhora não interrompa tão bruscamente o sono exausto de outra pessoa. Combinado?

- A senhora me perdoe...

- Nah, bobagem, a senhora me deu a oportunidade de despejar na senhora tudo que fica entalado quando outras pessoas ligam para sua casa e ficam irritadas querendo saber “de onde fala”, “quem é”, “qual o número daí?”, como se eu tivesse que abrir minha casa e meu nome a todo estranho que liga para cá. Muito obrigada por sua gentileza.

- Ah, vá para... (a voz irritante se despede com uma batida forte de telefone no gancho).

Olhando para o fone, a voz já não tão pastosa comenta para si:

- É isso aí.

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