19.4.04



Other Worlds


Feitiço



Ela era o que antigamente se chamaria de “cantora de cabaré”, e hoje chamam com certa indiferença de “músico da noite” – aquela criatura que pode ser confortavelmente ignorada, e que cria a música ambiente para seu chope e sua paquera. No caso dela, cantava sua tristeza diante de uma sala cheia de chope barato e paquera paga. Esta vida do trabalho na madrugada começou desde que Ele havia morrido, e ela achava bom. Qualquer motivo era bom para que ela não tivesse de enfrentar a cama vazia, a não ser quando já estivesse cansada o suficiente para não lembrar, não se importar.

Quando ele era vivo, seu violonista, seu amor, seu parceiro, eles tinham sonhos compartilhados, músicas amorosamente compostas e guardadas para aquele dia mágico quando algum figurão da indústria fonográfica sentasse no bar e descobrisse que a dona daquela voz grave e aveludada poderia ser um produto para sua gravadora. Ela cantava para ele, ele tocava para ela, eles faziam amor no palco no meio da música. Buscavam casas de renome para apresentar um show cuidadosamente montado para mostrar a capacidade vocal dela, o virtuosismo dele, algumas composições próprias discretamente inseridas no meio de elegantes clássicos da MPB. Depois que aquele bêbado asqueroso atropelou seu amado na volta para casa, ela se contentava de acompanhar aquele pianista míope naquele boteco de pegação, cantando os pedidos anotados com letra quase ilegível naqueles guardanapos quase transparentes.

Nada estava diferente naquela noite. Já havia cantado todos os boleros pedidos, as músicas de fossa anotadas, e os clientes vagarosamente levantavam, acompanhados ou sozinhos, para terminar a noite no hotel barato da esquina ou para esvaziar o estômago da bebedeira nos postes a caminho de casa. Alguns músicos conhecidos estavam em mesas nos cantos, jantando antes de ir para casa, bebendo seu chope com os colegas, ou simplesmente assistindo a colega cantar, depois deles mesmos terem terminado suas apresentações.

De repente Ele estava ali, sentado num banco do bar, lindo como nunca, vestido – onde já se viu, naquele pulgueiro? – num belíssimo smoking, vagarosamente tragando um cigarro. Ela gelou por dentro, principalmente depois que percebeu que podia enxergar o rosto do bartender através do rosto dele. Terminou a música bruscamente, nem lembrava mais o que estava cantando. O pianista pequenino de meia idade olhou para ela, surpreso.

- Que foi? Você está pálida...

Ela olhava direto para o rosto daquele homem que ninguém mais parecia estar vendo, a fêmea adormecida pela dor despertando aos gritos dentro dela. Seu amor, seu marido, sua vida... Ela virou para o pianista, que recuou assustado, mais que nunca parecido com um ratinho de cartoon:

- Você conhece as músicas de Rogers e Hart?

- Aqueles compositores americanos? Algumas.

- “Bewitched, Bothered & Bewildered”... conhece?

- Conheço, mas a gente nem ensaiou... e como vamos tocar isto sem um saxofonista? Vai ficar esquisito...

Ela olhou rapidamente entre as mesas, e lá estava ele. Seu amigo Gilberto era um saxofonista dos bons, e estava comendo uma pizza com uma das meninas do bar. Ela foi ao microfone:

- Senhoras e senhores, temos aqui no bar conosco um grande amigo e um grande músico, o saxofonista Gilberto Faria. Venha aqui, Gilberto, queremos escutar você.

Gilberto, surpreso, levantou os olhos do decote da moça e levantou-se ao som dos aplausos esparsos. A surpresa aumentou quando ela disse o nome da música que iam tocar juntos. Mas o desafio da jam improvisada, aliado à vontade de tocar – sempre presente em um bom músico – fizeram com que ele tirasse o seu instrumento do case sem discussão. Acertaram o tom, e os músicos se prepararam para tocar. Ela finalmente levantou os olhos e encontrou de novo aquele olhar transparente que não a abandonara um minuto, e que realmente ninguém mais podia ver.

- Senhoras e senhores, esta música não está entre os pedidos, é uma música que significa muito para mim e para uma pessoa muito especial.

Ela cantou de novo para Ele, depois de tantos meses... Ele vagarosamente subiu ao palco, posicionando seu corpo etéreo atrás do corpo material dela, tomando-a em seus braços de luz, beijando o pescoço de carne dela com o sopro de seus lábios imortais.

“I’m wild again, beguiled again
A simpering, whimpering child again
Bewitched, bothered and bewildered am I”

Vagarosamente, ele começou a dançar com ela, que fechou os olhos e deixou seu corpo balançar de encontro ao dele, corpo que ela podia sentir, cheiro que nunca saíra de sua memória.....

“I’ll sing to him, bring Spring to him
And worship the trousers that cling to him
Bewitched, bothered and bewildered am I”

Durante o solo de saxofone, o amor deles explodiu no gozo mais doce que ela jamais tivera. Ela terminou a canção numa névoa de prazer e felicidade... com a última nota do sax, escutou a voz dele dizer baixinho “amo você... sempre vou amar...”

Naquele dia, por acaso, um produtor musical americano estava mesmo lá, enchendo a cara – vermelha do excesso de sol – com a cerveja e as piranhas baratas.

Muitos anos depois, famosa e já velhinha, serenamente tomando a mão de seu amado, que viera buscá-la, ela confundiu a enfermeira americana, dizendo baixinho em português:

- Eles nunca perceberam que você sempre esteve aqui....