28.9.05

"Adeus vou-me embora (trecho)
Clarice Lispector


Como? Mas como é que eu escrevi nove livros e em nenhum deles eu vos disse: eu vos amo? Eu amo quem tem paciência de esperar por mim e pela minha voz que sai através da palavra escrita. Sinto-me de repente tão responsável. Porque se eu sempre soube usar a palavra - embora às vezes gaguejando - então sou uma criminosa se não disser, mesmo de um modo sem jeito, o que quereis ouvir de mim. O que será que querem ouvir de mim? Tenho o instrumento na mão e não sei tocá-lo, esta é a questão. Que nunca será resolvida. Por falta de coragem? Devo por contenção ao meu amor, devo fingir que não sinto o que sinto: amor pelos outros?

Para salvar esta madrugada de lua cheia eu vos digo: eu vos amo.

Não dou pão a ninguém, só sei dar umas palavras. E dói ser tão pobre. Estava no meio da noite sentada na sala de minha casa, fui ao terraço e vi a lua cheia - sou muito mais lunar que solar. E uma solidão tão maior que o ser humano pode suportar, esta solidão me toma se eu não escrever: eu vos amo. Como explicar que me sinto mãe do mundo? Mas dizer 'eu vos amo' é quase mais que posso suportar! Dói. Dói muito ter um amor impotente. Continuo porém a esperar."

(crônica publicada em 20 de abril de 1968 no Jornal do Brasil, e republicada no livro A Descoberta do Mundo, Ed. Rocco, páginas 95-96)


Mais uma vez, Clarice. Essa mulher que é tão diferente de mim quanto pode ser uma mulher de outra. Ela, que carrega altiva a tristeza eslava mesclada à melancolia nordestina. Eu que carrego entre risos e gritos e lágrimas a impulsividade italiana mesclada à irreverência carioca. Ela alta, esguia, 'com ares de princesa egípcia', como um dia escreveu em outra crônica. Eu baixa - não tão baixa para este país de pessoas desnutridas, mas baixa se comparada à juventude com quem lido em sala de aula - gorducha, muito pouco preocupada em parecer princesa de qualquer espécie.

Duas mulheres muito, muito diferentes. Como pode ser que cada palavra das crônicas desta mulher tão diversa me suba aos olhos como algo que vem do lugar mais fundo e íntegro do meu próprio coração? As noites que ela passou insone, passo eu insone hoje; as madrugadas que eu e ela fomos à janela, para a conversa silenciosa com nossa amiga lua. Falamos coisas díspares, isso é certo, completamente diferentes em nosso relacionamento com esta lunar amiga das mulheres noturnas. No final, no entanto, tudo muito parecido.

Tenho certeza que o que Clarice considera 'ser mãe' é tão contrário à minha maternidade interna quanto nosssas vidas e personalidades são antagônicas.

Mas é nessa maternidade que convergimos, não é Clarice? Pois é.

Neste amor que rasga a alma, que dói muito, que dói sem promessa de jamais parar de doer, não é Clarice? Pois é.

Neste amor impotente, sem força, sem capacidade de nada - a não ser continuar a esperar -, não é Clarice? Pois é.

Clarice já não espera mais. O que quer que seja pelo que esperava, conquistou. Cabe a mim agora meu quinhão de lua na janela, de insônia, de espera. Eu sento, então, e espero. Não é Clarice? Pois é.

10.9.05

Minha Mãe Maria




2005 A.B. (antes da biópsia)

"- Seu pai parece ter um tumor no pulmão esquerdo conhecido como carcinoma de células pequenas; também parece já haver uma neoplasia no linfonodo esquerdo da área do mediastino.

- E o que se faz, doutor?

- Está nas mãos de Deus."


2005 D.B. (depois da biópsia)

"- E então, doutor?

- Não era o carcinoma de células pequenas, mas um outro tipo, chamado de carcinoma de células pouco-diferenciadas.

- E agora?

- Ah, seu pai é forte, ele está bem clinicamente, tem todas as condições de encarar este problema e ter sucesso.

- Ou seja, continua nas mãos de Deus."


Há uma cena no filme Casa dos Espíritos que me toca especialmente. A filha, representada pela atriz Winona Ryder, está largada no chão de uma cela, depois de ser barbaramente torturada pela polícia política. Abusada, machucada, quase destruída. O espírito de sua mãe já morta, a maravilhosa Meryl Streep, vem ter com ela, e lança sobre ela uma bênção. Aquela bênção é o necessário para que a moça resista e sobreviva àquela situação pavorosa.

Nunca fui fisicamente torturada, como imagino que a maioria dos meus leitores também não. Mas não duvido que quase todos já tenham passado por alguns períodos de sua vida emocional em que se sentiram abusados, machucados, quase destruídos. Nestes momentos, eu também sinto a alma de minha mãe Maria Helena pertinho de mim, lançando seu amor e sua bênção sobre minha cabeça cansada, dando com o gesto de carinho a força que eu preciso para resistir. Por que a vida não necessita apenas de força, que é algo que eu tenho. É preciso também resistência e perseverança para que a luz que possuímos em nosso coração não se torne definitivamente em profunda sombra.

Por isso, agora, do fundo do meu coração, eu peço: Mãe Maria, vem até mim!


Let It Be (Lennon / McCartney)

When I find myself in times of trouble
Mother Mary comes to me
Speaking words of wisdom, let it be.
And in my hour of darkness
She is standing right in front of me
Speaking words of wisdom, let it be.
Let it be, let it be, let it be.
Whisper words of wisdom, let it be.

And when the broken hearted people
Living in the world agree,
There will be an answer, let it be.
For though they may be parted there is
Still a chance that they will see
There will be an answer, let it be.
Let it be, let it be, let it be. Yeah
There will be an answer, let it be.

And when the night is cloudy,
There is still a light that shines on me,
Shine on until tomorrow, let it be.
I wake up to the sound of music
Mother Mary comes to me
Speaking words of wisdom, let it be.
Let it be, let it be, let it be.
There will be an answer, let it be.
Let it be, let it be, yeah, let it be.
Whisper words of wisdom, let it be.