30.9.03



Braços abertos, mãos espalmadas



O amor... o amor. Pobre sentimento confundido diariamente, e tantas vezes esquecido em sua verdadeira forma. Trocado pela posse, pelo desejo, pela necessidade. As pessoas querem envolver e apertar umas às outras entre os braços, e nunca deixar o outro se afastar. E o aconchego do abraço vira a prisão do ciúme.

Para mim, amor é braços abertos. O abraço deve ser sempre pronto, mas leve e facilmente desarmado. O amado vem, se aproxima, confiante da acolhida, e se afasta confiante que sua pequena investigação solitária não vai ser confundida com rejeição. Se afasta como o cãozinho feliz de ter a guia solta, mas sem jamais pensar em abandonar o dono de seu coração.

Muita gente, gente demais, acha que amor é um domínio que se tem sobre o outro, ou um direito de determinar a extensão da liberdade do outro. Muita gente se ilude quando pensa que pode controlar as atitudes ou os sentimentos de outrem. Maridos, mulheres, namorados e namoradas que brincam de detetive na vida do amado. Gavetas reviradas, carteiras revistadas, relatórios detalhados das atividades.

Pais que querem impor planos de vida aos filhos, planos que eles jamais perguntaram se era da concordância de seus rebentos. Quantos pais ficam a falar, olhando para o berço do inocente: “Este vai ser (....) como o pai!” Quantas vidas envenenadas pela discórdia causada pela arrogância de um pai ou uma mãe em querer determinar a vocação do próprio filho. Ou mesmo negar a visível e patente vocação, por contrariar sonhos dos quais o filho jamais tomou parte.

Domingo, 21 de setembro, estava eu a tomar parte da celebração da Missa. Depois da comunhão, os habituais avisos comunitários. Mas estes não eram habituais. O sacerdote chamou ao microfone um rapaz, que havia pertencido ao grupo jovem daquela paróquia e agora se apresentava diante deles como um seminarista, que em pouco mais de 300 dias seria ordenado padre, depois de muitos anos de estudo e dedicação.

Como aquele rapaz exalava satisfação e vitória. Como era lindo o seu sorriso ao falar dos religiosos que o haviam auxiliado no caminho da realização de sua vocação. E que olhar melancólico ao dizer à congregação: "Tive de ultrapassar muitos obstáculos, um deles minha mãe a falar, 'Mas meu filho, eu não o criei para isto, e meus netos, não vai me dar netos?' Queridos amigos", continuava o rapaz "vocês acham que sacerdotes nascem prontos, que caem do céu, que vêm de Marte, que brotam da terra? Sacerdotes vêm das famílias."

Que difícil deixar os que amamos partirem para levar suas próprias vidas, que medo que temos de ficarmos sós... mas se há amor, há também como condição de felicidade a felicidade do outro, e só de braços abertos e mãos espalmadas, libertando quem amamos para fazer o que acham melhor, temos alguma chance de vê-los novamente, olhos brilhantes, ombros empinados, sorriso no rosto.

A congregação aplaudiu de pé aquele rapaz vitorioso, e eu não pude evitar de olhar através das lágrimas, um pouco acima e além, um certo alguém de braços abertos e mãos espalmadas, a nos fitar da sua cruz.

Nenhum comentário: