31.5.04



The Beauty Within

O Avesso do Reverso

Isto
Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!



Se eu pudesse, poeta, respondia. Dizia: teu sentir fingido, este afastar-se do sentimento, é o avesso do que faço, e algumas vezes lamento. Sinto; ressinto; de tanto sentir, de tantas vezes sentir, destilo o sentimento em gotas; pingam as gotas, correm as gotas; alambique da alma.

A bebida resultante desta condensação de alma não é vinho, mas é inebriante. É bebida agridoce, do mel, do suor e das lágrimas. É fruto das noites de vigília e dos dias de angústia. Temperado com risada de criança imaginária e uma pitada de maravilha.

Não é fácil produzir tal beberagem. É preciso, além de fé e coragem, uma boa dose de esquecimento e uma raspinha de perdão. Ela só envelhece sem avinagrar se for colocada no meio dos sentimentos mais nobres e da alegria mais pura.

Lentamente, esse sangue rubro destilado enche taças, em mim e em outros. Quem terá a coragem de erguer e beber?

23.5.04





Jacob and the Angel

Luta de Vida ou Morte



Deus certa vez mandou um anjo testar Jacó, durante sua fuga. Ele estava fugindo da fúria do irmão Esaú, porque roubou a primogenitura deste, aquela que Esaú vendeu distraídamente por um prato de lentilhas. No meio da estrada o anjo esperava, e disse que Jacó dali não passava. Jacó disse que passava sim senhor.

Ficaram lutando um com o outro por toda a noite, num eterno empate. Nem Jacó dominava o anjo, nem o anjo dominava Jacó. Ao amanhecer, o anjo sumiu e Deus apareceu e falou com Jacó. E disse que, por ter resistido, Jacó agora se chamaria Israel, e sua descendência seria o povo santo de Deus.

Muitas vezes lutamos nas nossas longas noites escuras, enfrentando anjos, como fez Jacó, ou nossos demônios particulares. A minha própria batalha está longe de ser ganha, acho que sequer cheguei àquela parte mais escura da noite, que antecede o amanhecer. Mas persevero, porque geralmente a recompensa é grande.

Hoje tive um relance da luta de uma pessoa de quem gosto demais e que está paralizada em seu próprio embate. Mas, felizmente, posso dizer que parece que a escuridão clareou um bocadinho, e está menos escuro que estava antes. O anjo mau que aprisionou as suas emoções está dando visíveis sinais de cansaço. Cansaço que aparece como irritação, mas não se engane, bem querer, é irritação do anjo mau, e sinal de vitória próxima.

Os muros do labirinto estão com micro rachaduras, e já posso ver pequeninos furos na possante argamassa que antes era tão lisa e impenetrável.

Continuo vigiando e esperando pelo amanhecer.

22.5.04





Dancers

Vem dançar comigo



Há dias em que acordo com música por dentro. Hoje foi um deles. A vontade era de partir para um lugar onde pudesse ficar sozinha com o mar ou com a floresta, e dançar ao som da música que vinha do meu coração. Se minha vida tivesse sido outra, imagino que seria bom ter sido bailarina. Sinto em todo o corpo a ânsia do movimento, uma explosão prestes a acontecer. Na maior parte das vezes, no entanto, ela não acontece como dança, mas como canto ou como escrita. E como carícia.

Hoje eu lembro do teu afago, homem-surpreendente, homem-de-asas, e me dá vontade de dançar colada no teu corpo; de beijar sua boca com gosto de fumo; de sentir a indefinível segurança que uma mulher sente diante de um homem verdadeiramente másculo.

Conversar. Ouvir sua voz meio rouca, sentir seu olhar atento passeando pelo meu corpo e pela minha alma. Sentir suas mãos experientes segurar minhas ancas enquanto dançamos. Roçar meu dedo travesso no côncavo do seu peito onde as clavículas se unem ao pescoço, sentir os pêlos macios e a vibração do riso grave de quem sabe muito bem o que sinto por dentro.

Vem me sequestrar, me leva para um lugar onde possamos novamente ficar a sós. Sinto saudades suas e uma vontade louca de dançar com você.

19.5.04







Lágrimas de Borboleta



Não é fácil ver uma borboleta chorar. As borboletas são especialistas em transmutar sofrimento em beleza, e por isso raramente se vê uma delas dar margem ao pranto. Elas preferem aumentar a iridescência de suas asas, seu colorido, fazer malabarismos mais audaciosos em seu vôo.

Mas borboletas choram, sim. Uma lágrima de borboleta tem poderes, como também os têm os chifres de unicórnio. É uma lágrima que cura, um poderosíssimo prisma que ofusca o sofrimento alheio e o transforma em esperança. Pois o que faz uma borboleta chorar é justamente o sofrimento de uma pessoa boa.

Este ser humano que escreve aqui, que algumas pessoas gentilmente chamam de Borboleta, esta pessoa chora exatamente ao contrário das borboletas. Chora aos borbotões, por qualquer coisinha, chora em comercial do dia das mães. Mas, ao dar de cara com uma pessoa boa que sofre, as lágrimas secam. Há uma energia, uma ânsia em ajudar, que faz com que ela se esqueça de sofrer. Então, não tenho poderes como as borboletas e os unicórnios, tenho apenas a força do meu abraço. Por isso, meus braços estão sempre abertos, prontos para abraçar... como as asas dos anjos e das borboletas estão sempre prontas para o vôo.

Hoje deparei com duas pessoas que sofriam. Pessoas boas. Uma pessoa amiga e uma pessoa desconhecida. Um geograficamente longe de mim, a outra existencialmente afastada de mim. Meu amigo eu só pude abraçar em pensamento, e esta nova pessoa só pude abraçar com o comedimento profissional do ambiente de trabalho.

Mas sei que hoje as borboletas choraram

16.5.04







Tempo e Hereditariedade




"O Velho do Espelho Mario Quintana

Por acaso surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto... é cada vez menos estranho...
Meu Deus, meu Deus... Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
Lentamente, ruga a ruga... que importa? Eu sou, ainda,
Aquele menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste..."



É um pouco assustador quando nos damos conta da hereditariedade. Sim, repentinamente vemos um rosto que não nos pertence no espelho, ou até percebemos que agimos ou falamos igualzinho a uma pessoa do passado, um pai, um avô...

Mais assustador ainda é quando esta pessoa é alguém por quem nutrimos sentimentos mistos de amor e ódio. Porque isto significa que odiamos um pedaço de nós mesmos. E o ódio por parte de nós transborda, ao longo do tempo, por ódio a tudo que nos diz respeito, e continua a transbordar para incluir os que estão à nossa volta...

Não dá para evitar sermos parte de uma família. Ao contrário, só podemos ser totalmente nós mesmos se absorvermos com amor e humor aquela mania igualzinha à da tia Maricota, o jeito de andar igual ao do pai, o temperamento difícil do tio Lúcio. Se absorvermos e transmutarmos em algo novo. Se lutamos contra, sempre perdemos a briga, e o resultado é um retumbante mau humor. De azedume todo mundo foge.

Ou faz troça.

Cara valente
Maria Rita Mariano

Não ele não vai mais dobrar pode até se acostumar
Ele vai viver sozinho desaprendeu a dividir
Foi escolher o mal-me-quer entre o amor de uma mulher
E às certezas do caminho ele não pôde se entregar
E agora vai ter de pagar com o coração

Olha lá ele não é feliz
Sempre diz que é do tipo cara valente
Mas veja só a gente sabe esse humor é coisa de um rapaz
Que sem ter proteção foi se esconder atrás da cara de vilão

Então não faz assim rapaz
Não bota esse cartaz
A gente não cai não

Ê! Ê!
Ele não é de nada
Oiá!
Essa cara amarrada
É só um jeito de viver na pior

Ê! Ê!
Ele não é de nada
Oiá!
Essa cara amarrada
É só um jeito de viver nesse mundo de mágoas

10.5.04




Presentes



Para você,no seu aniversário, só quero dar coisas especiais:

A alegria de ver o primeiro broto verde na primavera, depois de meses vendo tudo cinza e branco;

O sentimento de maravilha de quando a gente olha um bebê recém-nascido mamar, bebê gente ou bebê bicho;

O sentimento de completude que a gente sente quando percebe que passou o dia inteirinho feliz;

O azul profundo do céu de outono do Rio de Janeiro;

Barulho de mar no seu ouvido, sempre que você quiser, com direito a vento nos coqueiros e cheiro de maresia;

O suspiro que a gente dá depois daquele beijo que deixa o coração batendo feito um tambor alucinado;

O relaxamento cansado que a gente sente depois de passar uma noite batendo papo com amigos queridos;

O entusiasmo de descobrir uma coisa nova a nosso respeito;

A energia sensual do flamenco;

A xícara de café mais perfumada do mundo, na temperatura que for mais agradável.

Tudo isso, meu doce amigo, teria desejado ontem, se apenas eu soubesse ontem que ontem era um dia tão importante. Era o SEU dia. Calhou tão bem que seu aniversário caísse no dia das mães. Espero que toda a energia de amor que circulou ontem pelas casas do mundo tenha abençoado você.

Beijos, sempre beijos

Feliz nove de maio!

9.5.04


Dia das Mães



Este é um ano em que não tenho muito o que falar no dia das mães. Eu sinto que já disse muito, e muitas vezes, o que minha mãe significa - no presente, não no passado, apesar de morta há quase 18 anos - para mim. Ela sempre foi meu norte, e de muitas maneiras continua sendo. Portanto, para honrá-la, agradá-la e presenteá-la neste dia das mães, vou fazer do dia das mães o dia do meu pai.

Mãe, já fiz o manjar branco que ele gosta, mas ele não quer me deixar fazer o almoço, quer ele mesmo fazer o talharim ao alho e óleo - eu prometo que não deixo ele lavar um único garfo, apesar dele ser teimoso e ativo. Eu comprei um presente que sei que ele vai gostar: um DVD da Natalie Cole. Eu lembro, mãe, de como você contava da emoção que foi escutar o Nat King Cole ao vivo aqui no Rio, na década de 50, e ele gosta da filha quase tanto quanto do pai...

Tudo, mãe, que eu puder fazer por este meu querido "gatoso" (ihhh, ele ficou tão zangado quando eu contei que gatoso não era gato + gostoso e sim gato + idoso, mãe... hehe) eu farei. Eu bem sei que nada a faria mais feliz.

Feliz dia das Mães, dona Maria Helena... um beijo e uma prece da sua filha, sempre.



Aviso



Para aqueles que têm reclamado da minha ausência no A Contadora de Histórias, minhas desculpas e um aviso: tem post novo por lá... e os outros seguirão em breve.

Desculpem novamente a ausência prolongada. As aventuras da princesa Badoura continuam.

7.5.04





Storm at Sea


O Oceano e a Tempestade



Gota, goteja. Chove, pinga, troveja.

Ela cresce. Dentro de si explodem energias em rasgos de luminosidade. Ela rodopia em torno de si mesma, e as forças conflitantes batem e rebatem de encontro uma à outra, com explosões e ribombos. Ela dança. Rodopiando, ela o vê, deitado em repouso cheio de força, à beira do movimento que ela ama. Ela grita por ele com a voz do trovão.

Vento, venta. Sopra, bufa, solfeja.

Ele se eleva. Sua pele se encrespa em mil arrepios ao vê-la selvagem, magnífica, pousada sobre seu corpo. Seu poderoso corpo se ondula em mil movimentos de amor, na busca de tocá-la. Ele dança com ela a sua dança, suas evoluções de água indo de encontro às evoluções de ar que vêm dela.

Onda, ondula. Mexe, bate, volteja.

Ela espalha seus longos cabelos de nuvem sobre o peito forte dele: vagalhões que retumbam em eco a seu ribombar. Trocam beijos de eletricidade. Ela corre as mãos de chuva pelo seu dorso de mar. Gemem gemidos de ar.

Ondulam, ventam, gotejam. Mexem, bufam, trovejam.

O poeta, assistindo da praia, corre pela areia de braços abertos como a voar. Boca escancarada de chuva, cabelos soltos no ar. Grito solto no vento, pés molhados de mar. Testemunha ignorada da dança do amor, ele observa de olhos muito abertos, o coração a murmurar: belo, belo, belissimo!

OceanoMauro Malavasi

Piove sull'oceano, piove sull'oceano
Piove sulla mia identitá
Lampi sull'oceano, lampi sull'oceano
Squarci di luminositá

Forse qua in America i venti del Pacifico
Scoprono le sue immensitá
Le mie mani stringono sogni lontanissimi
E il mio pensiero corre da te

Remo, tremo, sento
Profondi e oscuri abissi

É per l’amore che ti do
É per l’amore che non sai
Che mi fai naufragare e
É per l’amore che non ho
É per l’amore che vorrei
É per questo dolore
Questo amore che ho per te
Che mi fa superar queste vere tempeste

Onde sull’oceano, onde sull’oceano
Che dolcemente si placherá
Le mie mani stringono sogni lontanissimi
E il tuo respiro soffia su me

Remo, tremo, sento
Vento in fondo al cuore

É per l’amore che ho per te
Che mi fa superare mille tempeste
É per l’amore che ti do
É per l’amore che vorrei
Da questo mare
É per la vita che non c’é
Che mi fai naufragare in fondo al cuore
Tutto questo ti avrá te e a semberá
Tutto normale

5.5.04





A Suplicante de Camille Claudel


Súplicas



Há 23 anos atrás meu pai me disse uma frase que eu nunca esqueci... estávamos no carro sozinhos, eu não me lembro o contexto. O que falamos antes e depois está completamente perdido para mim. Lembro apenas desta troca de frases, que até hoje me impressiona pela rapidez e intensidade com que dissemos coisas tão difíceis.

Meu pai, enquanto dirigia para casa, algumas centenas de metros antes de virarmos a esquina de nossa rua, disse esta frase: "Filha, POR FAVOR, vê se cria uma casca logo, se não você vai sofrer demais na vida." Eu lembro que baixei os olhos, com um certo pudor de estar falando de assuntos tão íntimos com meu pai, pois era com minha mãe que costumava fazer isto, e respondi: "Ah, pai, se eu soubesse como..."

Estas frases curtas são as minhas maiores verdades, as frases que foram repetidas de forma mais complexa ao longo de toda a minha vida adulta até agora. Amigos, amigas, namorados, irmãos, todos de alguma forma me recomendam "criar uma casca", aumentar a distância entre meu coração e o mundo. A minha resposta ainda não mudou - se eu ao menos soubesse como...

Desde muito nova, nunca pude resistir a um suplicante. Eu, que era uma menina que tinha todo o conforto e o carinho, era irresistivelmente fascinada pela carência alheia. Enquanto meus irmãos barganhavam ferozmente com minha mãe - que ao final de cada ano nos fazia separar os brinquedos mais antigos para doar ao orfanato das irmãs de São Vicente - eu tinha de ser freada, pois sempre queria dar pelo menos um de meus brinquedos mais caros ou mais bonitos. Eu nunca entendi o conceito de caridade como sendo "dar o que sobra"; eu sempre quis dar aos outros o que tinha de mais caro e bonito.

Enquanto se tratava de coisas de criança, minha mãe me freava. Logo, no entanto, descobri que tinha uma riqueza maior, que falta a tanta gente, mesmo as mais endinheiradas e as mais nobres: eu possuía e possuo uma riqueza afetiva, uma segurança profunda vinda do grande amor que recebi de meus pais, uma felicidade interna que pode até ser abalada com alguns cataclismas da vida, mas nunca desmorona. Esta riqueza é cobiçada por muitos, e muitos fazem uso dela, com a minha permissão, mas poucos dão a ela o valor que merece. E muito cedo minha mãe não estava aqui para me ensinar que não se joga pérolas aos porcos...

Eu as jogo. Aos porcos, aos passarinhos, aos gatos, às plantas, às pessoas de todo o tipo. O espantoso é que os pássaros, gatos e plantas devolvem generosamente as pérolas que recebem, multiplicadas. Descubro muitas vezes que são as pessoas que intimamente desprezam o presente dado com tanta facilidade, e as jogam no lixo da primeira esquina. Mas existe dentro de mim esta mola que me impulsiona a achar e a tentar tocar em uma sala de aula o coração do aluno mais inseguro; a amar com muita intensidade os amigos que menos entendem o que é amar; doar do meu tempo e da minha atenção muito, muito mais que deveria.

Um dia, numa exposição, eu vi uma mão estendida em súplica. Era uma mão de cobre, apenas uma mão, deitada sobre o feltro escuro de uma vitrine de museu. uma mão em concha, os dedos levemente arqueados e separados, a palma escura parecia pedir que eu depositasse ali a pérola mais preciosa. Talvez fosse o estudo inicial para as mãos da estátua acima, talvez Camile apenas estendesse, mais uma vez, e uma outra, por toda a eternidade, a todas as pessoas à volta, a própria mão eternamente vazia.

Aquela mão me manteve parada em frente àquela vitrine, as pontas dos dedos estendidas em sua direção, minha palma ardendo para tocar aquela palma vazia, encher de calor aquele metal frio. As enormes esculturas à volta desapareceram, exceto a da mão vazia e a da suplicante. Eu chorei, porque percebi que a sensibilidade profunda daquela mulher não tinha o respaldo da estrutura que eu tinha, e a pobre Camille sem casca naufragou na dor e na loucura.

Eu, ainda sem casca, mas fortemente armada e protegida pelo Amor, sobrevivo.






Camille Claudel