31.5.04



The Beauty Within

O Avesso do Reverso

Isto
Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!



Se eu pudesse, poeta, respondia. Dizia: teu sentir fingido, este afastar-se do sentimento, é o avesso do que faço, e algumas vezes lamento. Sinto; ressinto; de tanto sentir, de tantas vezes sentir, destilo o sentimento em gotas; pingam as gotas, correm as gotas; alambique da alma.

A bebida resultante desta condensação de alma não é vinho, mas é inebriante. É bebida agridoce, do mel, do suor e das lágrimas. É fruto das noites de vigília e dos dias de angústia. Temperado com risada de criança imaginária e uma pitada de maravilha.

Não é fácil produzir tal beberagem. É preciso, além de fé e coragem, uma boa dose de esquecimento e uma raspinha de perdão. Ela só envelhece sem avinagrar se for colocada no meio dos sentimentos mais nobres e da alegria mais pura.

Lentamente, esse sangue rubro destilado enche taças, em mim e em outros. Quem terá a coragem de erguer e beber?

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