27.1.05

Mergulho no inconsciente



Fecho os olhos. No espaço infinito interior, posiciono meu corpo mental num trampolim que aponta para o céu vazio. No espaço de três batidas de coração, percorro o trampolim e me lanço no nada. Uma respiração bem lenta... as nuvens muito brancas passam velozmente por mim enquanto caio, mas não há vento nem atrito, eu caio rápida e suavemente. Mais uma respiração lenta e profunda... meu corpo mental ensaia rodar no ar, fazer arabescos. Estou no reino onde tudo é possível, onde não há os habituais limites do físico. A queda se torna cada vez mais veloz, e mais suave.

Cada vez menos percebo meu corpo físico. Agora a realidade é a queda, o vôo. Uma terceira respiração, mais lenta e profunda que as outras duas... as nuvens brancas se partem, e posso ver lá embaixo, ainda pequenina, uma enseada de mar muito limpo e azul, uma praia de areia muito branca, e na beira da areia escadas que levam a uma casa. Minha casa. Minha praia, meu mar. Eu. Voltei.

Entro no mar como uma flecha, e me sinto cercada de bolhas que me pinicam gostoso... deve ser esta a sensação de mergulhar numa taça de champagne. A água é cristalina, e o céu ensolarado me permite ver meus alegres golfinhos nadando a meu lado. É uma escolta, porque meus alegres guardiães sabem que nas profundezas mais escuras deste mar existem tubarões que me enchem de temor. Mas aqui, na minha enseada, no meu lugar especial, eles não chegam, porque minha escolta da alegria não permite. Chego na praia, caminho pela areia úmida ao encontro da escadaria, e no pé dela dois seres me aguardam, um lobo grande e solene, uma pantera de olhos amarelos.

Um afago na cabeça de cada um, um olhar de boas vindas. Subimos juntos os degraus. Uns 50 deles, porque a casa fica no alto, e de sua janela posso ver ao mesmo tempo a enseada e o horizonte. Finalmente chego até a porta, com um suspiro cruzo o umbral, e a roupa de banho molhada dá lugar a uma túnica leve e folgada. Ao meu lado não estão mais um lobo e uma pantera, mas meu cãozinho Buggie e minha gatinha Dora, meus pequenos companheiros internos, familiares, queridos, cheios de vida e saúde, tão diferentes dos corpos sem vida de que eu me despedi fazem já alguns anos. Lá fora na praia eles são meus guarda-costas, as feras que me protegem de feras muito piores que trafegam pela mata, mas aqui são apenas meus filhinhos peludos, que me fazem companhia no meu lugar.

E o meu lugar é um enorme quarto, amplo, claro, com algumas portas que se abrem para outros lugares, diferentes, e neste quarto há uma imensa cama macia, onde muitas vezes vou apenas para repousar a mente cansada. Hoje, no entanto, apesar do cansaço, não vim para repousar, mas para averiguar a chegada de um novo companheiro.

Ao chegar à beira da cama, eu o vejo. Junto dele, cuidando do recém-chegado, o meu outro cãozinho, Ly – que em chinês quer dizer sorte –, amável cãozinho que no fim de sua vida foi pai adotivo de Dora e deste que chega agora... meu gatinho Tetê, ainda fraco da viagem, mas sem as marcas da doença que o derrubou ainda tão novo... nada de icterícia amarelando sua pele, nada de pêlo sem brilho, ele está deitado, ainda cansado da jornada, mas recuperando rapidamente o viço perdido, principalmente com os cuidados do pai cão, eles que sempre se gostaram tanto.

Sento no meio da cama, de pernas cruzadas, e meus quatro amigos se ajeitam em torno de mim. Eu sei que quando tornar a abrir os olhos para o mundo fora de mim, quando tiver de sair de meu mundo particular, a saudade deles vai me fazer doer o coração, mas agora é só a felicidade que qualquer bicho de estimação sente quando a dona chega em casa, agora é a alegria comum, corriqueira e preciosa dos ronronados, das lambidas afetuosas.

Dorinha, sempre a mais afoita dos dois irmãos felinos, abusa da paciência do gato e tem de ser repreendida, mas é uma repreensão cheia de riso. O Ly, como sempre fez, chega bem pertinho de minha coxa e mostra a barriga para afagos. Buggie, ciente de sua dignidade, deita um pouco ao largo da confusão, da maneira que sempre gostou: patas de frente paralelas diante dele, patas de trás esticadas ao máximo para trás, a barriga toda encostada no edredon fresquinho. Mas, apesar de tentar manter a aparência de lorde, a boca é toda sorrisos, e a língua aparece num arfar de felicidade. Mamãe está em casa.

E mamãe deita na cama, e deixa o amor simples dos seus bichinhos embalar seu sono. Amanhã de manhã a realidade se impõe. Mas a madrugada é muito mais amiga do sonho que da realidade.

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