24.12.02

Feliz Natal

Estamos chegando pertinho do Natal... e a maioria das pessoas não se lembra sequer o que isto significa. Um belo dia, Deus Nosso Pai decidiu que já estávamos há muito tempo batendo cabeça, procurando cegamente o caminho de volta pra Ele. Num gesto de puro amor, enviou seu Filho Unigênito à terra dos homens, para como uma tocha nos dar Luz, para pavimentar com seu sangue o caminho de volta ao Pai. No Natal, celebramos o dia Feliz/Triste, quando Nosso Senhor se faz Homem por nós. É o Nascimento com a promessa da Cruz. Na Páscoa, celebramos o dia Triste/Feliz em que Nosso Senhor morre e vence a morte por nós. É a morte com a promessa de Vida Eterna.

Este drama da Salvação se repete todos os anos no calendário litúrgico, mas nunca lembramos que Jesus, que não tinha absolutamente que passar por isto, livremente escolheu toda fragilidade humana, todo o sofrimento, e nos levou junto com Ele para a glória. Não, Páscoa agora é data de se empanturar de chocolate, e Natal de rabanada e panetone. E quem por acaso não tem dinheiro para a mesa farta e os brilhantes pacotes, sente-se lesado e apartado da celebração. Nada podia ser mais longe da verdade que isto.

Pois se o Nascimento que mudou o mundo foi anunciado primeiramente aos mais humildes, aos pastores no campo! Não, toda esta coisa de troca de presentes, de perú, de panetone, de rabanada, de comilança e de festa, tudo isto esconde a Verdade ao invés de anunciá-la. Cristo nasceu para TODOS nós, para que pudéssemos enxergar com mais clareza o Pai, para que o Menino nos levasse de volta para o nosso lar, que abandonamos há tanto tempo pela arrogância e desobediência...

A festa maior devia ser mesmo no campo, no meio dos mais simples, dos que sabem que a coisa do Papai Noel é apenas um papel colorido que recobre o verdadeiro presente. Eu sou carioca, mas filha de gaúcho, e faz muito tempo que percebi que havia uma pureza, uma honestidade, uma REALIDADE maior no povo de lá... É um povo muito simples, muito religioso, muito patriota, muito BELO. Eles sabem celebrar e desejar uns aos outros um Natal Santo, e vou utilizar um poema de lá para desejar a todos que acessarem este meu blog, amigos, inimigos, leitores habituais e acidentais um Natal com tudo o que mais importa.

Menino Jesus, abençoa a todos que aqui entrarem, é em Teu nome que eu peço, Amém.

Natal Galponeiro
Jayme Caetano Braun / Lucio Yanel

A cuia de chimarrão
É o cálice do ritual
E o galpão é a catedral maior
Da terra pampeana
Que de luzes se engalana
Para esperar o Natal
A cuia aquece na palma da mão
Da indiada campeira
Dentro da sua maneira,
Rezando e chairando a alma
Pra recuperar a calma
Que fugiu do mundo inteiro
Enquanto o estrelão viajeiro
Já vem rasgando o caminho
Para anunciar o Piazinho
A Virgem e o Carpinteiro
Em nome do Pai,
Do Filho e do Espírito Santo
É o chimarrão que levanto,
E o vento faz estribilho
A prece do andarilho,
Ao Piazito Salvador
Filho de Nosso Senhor,
Do Espírito e do Pai
De volta à terra
Aonde vai falar de novo em amor
Tem sido assim dois mil anos
Ninguém sabe, mais ou menos
Vem conviver com os pequenos,
De todos os meridianos
E repetir aos humanos,
As preces do bem-querer
Quem sabe até pode ser,
Que um dia seja atendido
E o mundo velho perdido,
Encontre paz pra viver
Ele sabe da apertura em que vive o pobrerio
A fome, a miséria,
O frio porque passa a criatura
Mas que inda restam ternura,
Amizade e esperança
E que pode a cada andança,
Mesmo nos ranchos sem pão
Aliviar o coração
Num sorriso de criança
Pra mim, que ouvi nas missões,
Causos de campo e rodeio
Do negro do pastoreio
Cruzando pelos rincões
Das lendas e assombrações
E cobras queimando luz
Foste, Menino Jesus
O meu sinuelo de fé
Juntando ao índio Sepé
O Nazareno da cruz
E a Santa Virgem Maria
Madrinha dos que não têm
Fez parte sempre também
Da minha filosofia
Eu, que fiz de sacristia
Os ranchos de chão batido
E que hoje, encanecido
Sou sempre o mesmo guri
A bem dizer por aí o pago onde fui parido
E o Nazareno que vem
Das bandas de Nazaré
Chasque divino da fé
Rastreando a luz de Belém
Ele vai morrer também
Para cumprir as profecias
É Natal
Nasce o Messias
Salve o Menino Jesus
Mas os que fogem da luz
O matam todos os dias
Presentes papais noéis
Um ano esperando um dia
Quando a grande maioria
Sofre destinos cruéis
O amor pesado a mil-réis
E mortos-vivos que andam
Instituições que desandam
Porque esqueceram Jesus
O que precisa é mais luz
No coração dos que mandam
Que os anjos digam Amém
Para completar a prece
Do gaúcho que conhece
As manhas que o tigre tem!
Não jogo nenhum vintém
Mesmo sendo carpeteiro
Mas rezo um tedéum campeiro
Nesta catedral selvagem
Pra que faça boa viagem
O Enteado do Carpinteiro!

15.12.02

Amor aos Mortos

O dia 14 de dezembro é um dia complicado para mim. É o dia que eu estaria comemorando com minha mãe, se ela estivesse viva, o seu aniversário. Então peço licença a todos os vivos para falar agora com meus mortos, especialmente a linda aniversariante:

Mãe, você é hoje ainda mais próxima de mim do que quando era viva, porque hoje você é uma mãe que não reclama da bagunça, que não fica falando para eu rir mais baixo, que não fica esperando acordada eu chegar da rua de madrugada. Hoje você é uma Mãe Amor Absoluto, uma Mãe Sorriso, uma Mãe Colo. Hoje você é parte indissolúvel de mim, aquela mãe que eu carrego no meu coração e que fica sussurrando baixinho no meu ouvido "vai, filha, por nós duas..." Hoje você é parte da estrutura que me mantém de pé, parte da minha força, parte da minha capacidade de amar. Feliz aniversário, mãe. Nem precisa falar que não poder abraçar você dói como ferro em brasa... São 17 anos sem seu abraço, mãe, mas cada dia mais eu sinto você aqui, dentro do meu coração. Não posso comprar um presente para enfeitar você, minha mãe, mas sua alma é tão bela que nada poderia enfeitá-la mais... Um beijo, uma oração, um pensamento amoroso, todos os dias, todos os dias, todos os dias...

Eu acho que as pessoas evitam de falar nos seus mortos, têm medo deles, e acham muito esquisito eu falar dos meus com tranquilidade. Tenho apenas UM amigo que entende. Porque ele, como eu, tem seu amor dividido entre este mundo e o outro, às vezes desequilibradamente mais lá que aqui. A presença destes mortos amados é interna, preciosa, eles nos tocam de mansinho, nos abençôam, nos protegem. Eles nos aceitam e entendem, não discutem conosco, porque enxergam a parte de nós que os vivos não vêem, e é a parte mais bonita. Eles lêem nossos corações, escutam nossa mente, nos amam sem a cobrança irremediável dos vivos. Sei que este amigo entende e compartilha, com os seus mortos, desta carinhosa convivência com os amados que partiram. É ao mesmo tempo muito triste e muito sereno amar um morto. Isso quando sabemos que eles não estão aqui, mas estão logo ali, e estamos caminhando em direção a eles.

Hoje foi então dia de festa na casa de meus ancestrais, porque foi o dia, muitos anos atrás, que uma linda menina de olhos verdes como os meus veio a este mundo para crescer, encantar a muitos, amar a apenas um, ter os filhos dele, inclusive eu. Este é um dia para ser comemorado sempre, apesar de minha mãe agora comemorar o seu aniversário em um outro dia... Ela nasceu para a vida eterna no dia 14 (também) de maio de 1986, e espero que esteja desabrochando lá como desabrochou aqui, a mais linda rosa de nossa família.

Como um último presente, parte da letra de uma lindíssima música do sagrado Coração da Terra, que é quase exatamente o que sinto em relação à minha mãe... uma homenagem aos meus amados mortos, e um carinho nos meus amados vivos, em especial naquele amigo que sabe bem do que estou falando. Este post também é para você, meu amigo querido.

CORPO VELEIRO

O tempo apaga tão bem as memórias
Quase não me lembro mais
Da tarde em que deixei a tua mão
Como o navio deixa o porto bom
E os ventos da sorte
Levaram a branca vela dos meus sonhos
E se perderam nas brumas do tempo
Sigo teu rastro nas águas
Pelo resto da vida
A noite no corpo
Mas na brisa teu nome

Mente que viaja
No veleiro do corpo
Buscando entre os sonhos
E ilusões, teu porto
Guia o meu sentido
Estrela cintilante
Oh Mãe das grandes águas
Dormindo mansamente
No fundo dos meus olhos
No fim do meu caminho
Te esperarei sorrindo
Veleiro de luz eu te encontrarei






12.12.02



Eu pensei em colocar este símbolo na coluna esquerda, embaixo dos links dos sites das pessoas que admiro. Simplesmente não funciona. Esta aqui é uma campanha de saúde pública, que fala de uma pessoa muito aquém das que estão listadas debaixo do logo da borboleta, e não merece estar ali. Esta campanha é só para lembrar que censura, egocentrismo e alpinismo social existem até na Internet, que sempre foi e sempre será uma miniatura (esquecemos sempre disto, mas é verdade) do mundo real.

Repúdio intenso à figura desta pessoa e tudo o que ela representa. Sempre.

11.12.02

Dez de Dez.
ou
A Morte da Figueira
ou ainda
O Ano Novo de Paulo Polzonoff


Este texto tem muitos títulos. Pensando rapidamente, surgiram estes três. Ao longo do tempo, tenho certeza de que me ocorrerão outros, e a cada leitor outros mais. É um texto sobre fins e inícios. Sobre vida, morte e a possibilidade de renascimento.

Hoje é dia 10 de dezembro de 2002. Durante a manhã, uma figueira centenária logo atrás do meu prédio caiu, talvez devido às chuvas que não param de cair, talvez por cansaço de viver, talvez por pura maldade (nunca fui muito com a cara daquela árvore, ela sempre me pareceu sombria e malvada). À tarde, meu amigo Paulo Polzonoff (http://polzonoff.blogspot.com) foi enfrentar em juízo uma ex-namorada, que o processava.

Durante este dia, sem energia elétrica -- porque a tal figueira fez questão de morrer espetacularmente, derrubando três postes e deixando a vizinhança sem luz por doze horas --, o jeito foi comprar umas pilhas, escrever e escutar música no discman. Num dia de chuva, com uma árvore tão antiga a sangrar seiva, lentamente picotada pelas serras, só havia uma coisa a fazer: escutar Pink Floyd.

Algumas pessoas nem ligam, mas é duro para mim ver uma árvore morrer. Mesmo aquela figueira, que parecia saída de um pântano de filme de terror, cheia de longas barbas. Mas ela tinha seus predicados, protegia a janela do meu quarto dos raios mais fortes do sol da manhã, abrigava muito da passarinhada da região e era o local onde um casal de falcões peregrinos tinha seus filhotes todos os verões. Com certeza, muitos animais vão ficar sem abrigo. A própria paisagem da janela do meu quarto foi drasticamente alterada pela ausência desta árvore. Neste aspecto, acho que ganhei mais céu... Mesmo assim, tem sido, ao longo da tarde, bastante deprimente escutar o barulho da figueira sendo recortada pelas serras elétricas, barulhentas e impiedosas, aguardando notícias do meu amigo Paulo.

Paulo, querido, que alívio que tudo correu bem! E que perseguição implacável estas mulheres loucas fazem a você! Eu ainda não entendo como alguém que compartilhou da sua intimidade possa ter o desplante (com trocadilho, sem trocadilho, como ele mesmo diz; pobre figueira!), como dizia, o desplante de levar você aos tribunais. E ainda por cima por um motivo que é mais que fútil, é maldoso: ela, como sua antiga psicóloga e ex-namorada, acusá-lo de ameaça de morte por causa do conteúdo de um conto seu, escrito logo após o fim de seu relacionamento!!

Ah, meu amigo, vivemos em uma época rude, cheia de analfabetos funcionais, que acham que sabem ler só porque a tia Maricotinha lá do grupo escolar (primário, ensino básico, ensino fundamental, como queira) disse em algum lugar do passado que mais á é . Sim, mais á é , mas este pode ser tanta coisa! Certamente que o seu não é a agressão que esta mulher diz que é, a mim parece apenas uma balada triste sobre o final trágico de um amor, que se quedava sangrando em seus braços. Mas esta senhora sabe disto, não sabe? Você sabe que o que estava morrendo ali era o SENTIMENTO, não sabe, ó discípula da Tia Maricotinha?

Porque a realidade é que as coisas MORREM mesmo, quando chega a sua hora, desde amores em botão até figueiras centenárias, e é assim mesmo que tem de ser. Tudo o que vive mais que deveria -- e isto às vezes acontece -- se transforma em fonte de aborrecimento e desgosto. Quando as coisas acabam na hora certa, deixam atrás de si um sentimento agridoce, uma tristezazinha gostosa, que de vez em quando vale a pena recordar. Pensando por este lado, acho que a figueira foi então na hora certa, pois já sinto um pouco de nostalgia quando olho o vazio deixado por ela. Já sinto saudades, mesmo daquela árvore mau-humorada.

Já a ex do Paulo alongou artificial e grosseiramente o final de um amor, tornando o seu enterro um longo e macabro velório que -- muito felizmente para a paz de espírito do meu amigo -- acabou hoje no tribunal. Esta morte, tenho certeza, está sendo comemorada não só em Curitiba, mas em toda parte onde haja amigos do Paulo. E amanhã, após a tradicional pá de cal, vamos todos relegá-la ao mais profundo esquecimento, que é mais do que ela merece!

Falando com Paulo, hoje mais cedo, ouvi um aliviado: "vou sair e comemorar o Ano Novo, porque meu ano acabou hoje!" Sim, querido, agora que a Morte finalmente chegou, é hora de renascimento! Vá curtir o seu ano novo, que você merece um novo ano cheio de amigos novos (Mentecaptos, ho!, hehehehe) e de um amor tranquilo, que dê bons frutos.

Eu vou ficar aqui, na janela, lembrando dos piadinhos dos jovens falcões dentro da copa cerrada da figueira, olhando o céu geralmente azul do rio, agora tão nublado, e vendo minha amiga mangueira ficar dia-a-dia mais frondosa, agora que não precisa mais disputar a luz do sol. É, a vida é assim...

9.12.02

Escritores

Quem gosta de escrever como eu gosto tem verdadeira admiração por escritores bons. Não necessariamente famosos, veja bem! Bons. Pessoas que, com seus textos, conseguem nos arrepiar, nos irritar, nos alegrar. O texto parece uma coisa viva, que desenrola bem diante de nossos olhos um movimento, uma cor, uma intensidade. Conheço algumas pessoas que escrevem assim. Uma delas já foi homenageada neste blog há algum tempo, meu queridíssimo Dennis. Dennis criou em seu Caderno Mágico um mundo deveras particular, e aqueles que têm o passaporte viajam para lá sempre que podem. Mas existe um outro, que é preciso homenagear, um amigo que tem o dom de futucar lá dentro de mim e trazer à tona sentimentos que eu nem suspeitava que existiam: Alexandre Soares Silva.

Alexandre é um caso perdido nestes tempos modernos: na realidade ele é um cavalheiro inglês do século XIX (sim, XIX, algarismos para o Alexandre, só os romanos!). Sempre acompanhado de sua bengala -- que esconde uma espada afiada que ele maneja muitíssimo bem --, das suas polainas e de seu monóculo, Alexandre observa este mundo moderno com o riso mal-contido de quem SABE que é tudo muito ridículo.

Sempre lânguido, em uma pose indolente, reclinado em sua poltrona e rodando a bengala com os dedos, evitando o mais possível enredilhar-se na velocidade do homem de hoje, Alexandre parece dormitar, quando nos fita com seus olhos entrefechados. Mas não caiam no erro de pensar que ele tem reações lerdas. Em um piscar de olhos, a capa de madeira da bengala cai ao chão, a espada afiada está encostada no seu peito bem na altura do coração, e Alexandre boceja e pergunta: "Surrender?" Os que são tolos o suficiente para não fazê-lo são sumariamente cortados em fatias e alimentados às suas carpas (sim, ele tem uma criação de carpas em seu castelo escocês).

Alexandre trouxe para este nosso tempo sem elegância um toque de cavalheirismo e coragem que não existem mais. Nas suas campanhas no exército de Sua Majestade contra os Zulus, ele se destacou a ponto de ser promovido a general por bravura no campo de batalha. Sim, ninguém diria isto olhando para o ainda jovem senhor a ler Oscar Wilde em sua poltrona, com seu Cocker Spaniel a seus pés e uma bandeja com chá e bolinhos a seu lado. Ele é um general com larga experiência de guerra, grande espadachim (já falei isso, mas é sempre bom repetir; tem gente que não acredita), com o olhar e a língua tão afiados quanto sua espada.

Finalmente meu General teve a bondade de nos brindar com um pouco mais de seu tempo e de sua verve, montando o blog http://alexandresoaressilva.blogspot.com, que é como uma bebida bem refrescante e gelada depois de uma partida de tênis. É realmente um prazer e um encantamento ficar esperando as surpresas que este Sir tem reservadas para nós. Dá vontade de me abanar com um leque de plumas, comprar anquinhas e jogar pequeninos lenços de renda ao chão. I'll say! My Goodness! Bravo, General!

7.12.02

Desculpem a demora de postar coisas novas, meus leitores queridos e demais curiosos. Além de não estar muito bem das pernas (na realidade, da coluna) e de estar em época de final de ano letivo, o que por si só já enlouquece qualquer cristão, tenho estado às voltas com a ira do deus Hagatemol, que rege o transito na net.

Aqueles que não estão conseguindo acessar o Outonos, tentem um proxy server. Veja esta lista:
http://www.anonymizer.com/
http://proxy.guardster.com/
http://www.proxyspinner.de/


Se não funcionar, tentem fazer uma oferenda de disquetes na encruzilhada! ;o)

O deus Hagatemol anda MUITO zangado!

Beijos a todos, já volto com a carga máxima!




24.11.02



Sensações indescritíveis

Eu sempre tive trabalho em descrever o que me agrada. Declarar o que me incomoda é fácil, como acredito que seja fácil pra qualquer um criticar e reclamar. Para mim o problema aumenta quanto mais fundo a coisa me toca. A coisa vai tomando uma forma nebulosa, que não consigo segurar com as mãos, e como qualquer névoa, toma conta de tudo. Mais ou menos como um perfume muito delicado e gostoso que toma conta de um ambiente, sutilmente, e que as pessoas ao passar sentem mais como um bem-estar e uma leveza que um perfume. E, ao sair, soltassem um "ahhhh!" suave e um leve sorriso.

Este ahhh! e este leve sorriso foi o que eu levei comigo, debaixo de chuva, à pé, do Maracanã até em casa. Foi uma noite perfeita, e mesmo a chuva suave, que iniciou assim que pusemos os pés fora do estádio e parou assim que atinginos a portaria de meu prédio, parecia uma benevolência de Deus, a nos dar banho para que não chegássemos em casa de uma experiência tão bela cheirando a suor e a maconha. Suor e maconha -- e PMs -- foi o que não faltou lá dentro daquele estádio. Os PMs olhavam a gente meio envergonhados, tadinhos, como se soubessem que não cabiam ali, ou como se nossa alegria provocasse neles pejo. Ah, nem os PMs, nem as pessoas que gritavam e bebiam demais, nem os doidões que acabaram desmaiando por causa do calor de tanta gente junta, nada desagradável tinha substância lá dentro. Apenas três seres tinham substância dentro daquele estádio: Geddy Lee, Neil Peart e Alex Lifeson. Mais ainda que eles, a música era o que tinha substãncia, tanta que era quase possível tirar fatias dela do ar.

Eu nunca vi três pessoas construírem alvoradas e dragões e buracos negros e florestas e universos paralelos feitos de música antes. Sorrindo, como três velhos amigos que são, e com a facilidade do mágico que tira um coelho de uma cartola. Nunca vi um homem cantar com AQUELA voz, sem falsear um tom, sem uma rouquidão, por mais de três horas. Nunca escutei sons como os tirados por AQUELE guitarrista, como se todos os instrumentos do universo estivessem sendo criados naquele instante em que tocava as cordas com os dedos. Nunca vi um baterista como AQUELE, fazendo de seu solo um balé e um concerto dentro do concerto, chegando ao extremo de me passar a impressão de que estava usando mais de dois braços. "O homem é um polvo!", exclamei para o divertimento do rapaz ao meu lado, que sorriu e disse "boa!"

Eu nunca recebi tantos sorrisos, nem conversei com tanta gente que nunca vira antes, como neste concerto. Pessoas de minha idade, mais jovens, mais velhas, um rapaz acompanhado de amigos e do filho, uma coisinha linda de uns nove anos de idade, mistura de metaleirinho e anjo barroco, que o pai abraçava e beijava repetidamente em alegria incontida. Meninos com cara de bons moços, abraçando suas namoradas, motoqueiros quarentões, com suas camisas Harley e as bandanas do show. Tudo na mais santa paz, coalhada de sorrisos.

E a música? Que dizer da música do Rush? Impossível. Muito, mas muito acima das minhas parcas qualidades de escritora. Melhor que vocês não aceitem apenas minha palavra: eles avisaram que o DVD da turnê estava sendo gravado naquela noite. Esperem pelo DVD e vejam o que eu vi, e já será uma experiência maravilhosa. Porque nunca, nunca, vocês serão capazes de entender o que eu senti.

23.11.02

Aos Homens do Sul

Já morei em toda a parte. Até fora do país. Andei por um bando de cidades, e conheci pessoas de quase todos os estados do país. Com todas estas experiências no currículo, e morando numa cidade como o Rio de Janeiro, onde se encontra gente de toda a parte, tenho de dizer uma coisa: ando edipianamente encantada com os homens do sul.

Digo edipianamente como figura de linguagem, apenas porque sou filha de gaúcho, não porque -- como se diria em Hollywood -- 'my heart belongs to Daddy'. Mas é engraçado o fato de que meu primeiro contato mais profundo com um homem pela Internet foi com um gaúcho. Depois, um outro gaúcho internauta virou um grande e querido amigo, e passamos bons momentos este inverno aqui do Rio, tomando vinho do Porto e jogando conversa fora. E hoje tenho dois tesouros guardadinhos, um lá no Paraná, outro em Santa Catarina: Paulo e Guilherme.

O Paulo é mais à flor da pele, sério, ocupado, um homem envolvido totalmente com seu amor pelas letras. Envolvido e envolvente como escritor e como amigo. Paulo, é uma alegria e uma honra poder declarar escancaradamente aqui no Asa que você é uma pessoa para lá de especial! Depressivo, highstrung, ácido, mais sensível do que seria bom para você, você demonstra sempre que com tudo e apesar de tudo, você não tem medo de ser quem é. Tenho orgulho da sua amizade oferecida, tenha certeza de que ela foi aceita com gratidão e alegria.

E o Guilherme, ah!, o Guilherme... se ele usar metade do charme que tem no tribunal, não tem juíza que dê ganho de causa para outro advogado. Alegre, boa conversa, promete ser amigo de copo, de conversas, de leituras. Já me pego procurando os e-mails dele na minha caixa postal, porque são divertidos e agradáveis desde o título até o ponto final, com direito a coisa séria no meio de tantos sorrisos. Guilherme me presenteou com muito sorrisos. Seja bem vindo, Guilherme, da espécie Quandtus queridus, em perigo de extinção. Um dia destes arrumo minhas malas e vou à boate com você em Floripa!

Eu tenho um bom pedaço do meu coração em São Paulo -- afinal, o Dennis, o Felipito, a Inês, a Larinha, o Alexandre e o Fabio arrastam meu bem-querer para lá. Tem uns pedacinhos de coração de borboleta com a Marguinha em Natal, com o Rogério em Fortaleza, com o Félix em Brasília, com o Evandro em Belo Horizonte.

Mas hoje peço licença aos amados de todos os lugares, para fazer um carinho mais especial nestes dois homens do sul.

Meus novos amigos, sejam bem vindos!

13.11.02



Amores de Borboleta

SONETO DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
de uma brancura de manhã raiada.

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada.

Porque te vi nascer, de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura.

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.
(Rio, 1941)

Vinícius de Moraes escreveu sonetos mais famosos, mais alegres, melhores que este. Mas esta manifestação de um jovem homem de 28 anos (sim, 28 anos é bem jovem) me toca no fundo do coração, porque tive amores assim. Amores de quarta-feira de cinzas, que começaram já com data para acabar. Foram vários os motivos... ele tinha compromisso com outra, era muito mais velho ou muito mais novo, simplesmente não queria o que eu queria. Então, estes amores são transformados em amizades sensuais (DETESTO o nome "amizade colorida", como se todas as outras fossem cinza...) que depois, se tivermos sorte, viram amizades normais. Alguns destes amores se perdem no tempo, ou acabam como acaba toda a paixão... em cinzas.

O amor deste tipo mais doce e mais doído é o da mulher mais velha pelo rapazinho. Ah, como é lindo olhar o mundo e a você mesma pelos olhos daquela pessoa tão inocente ainda, uma criança barbuda com menos cicatrizes e mais entusiasmo que você. Como a sua experiência maior se transfoma em doce contemplação daquela pessoa de alma tenrinha. Como dão um ao outro prazer e alegria, carinhos e brincadeiras. E como as pessoas jogam pedra...

Acontece que o que as pessoas não lembram é que este é um relacionamento quase que arquetípico, e uma tradição muito, muito antiga. Sociedades da antiguidade possuíam uma bela tradição de homens e mulheres mais velhos iniciarem sexualmente os jovens que entravam na puberdade. Ensinavam-os a dar e receber prazer, a cuidar do próprio corpo e do corpo do outro. O Kama Sutra, que nossa mentalidade podre transformou em manual de sacanagem, é um dos antigos exemplos do preparo que os jovens recebiam para o matrimônio. É, para o matrimônio. NÃO É um manual de sacanagem, olha só! Quem diria, hein?

Dizem os frios cientistas da modernidade que o homem alcança seu pico sexual aos 18 anos, enquanto que a mulher aos 35. Isso deve ter alguma razão, biológica, cultural, emocional, sei lá. O que sei é que tive namorados mais velhos, da minha idade, um pouco mais novos, e em nenhum destes relacionamentos eu encontrei a doçura do homem mais jovem. Eu dei de lembrar hoje de todos os homens que amei, não foram tantos, alguns foram breves, mas todos eles me tornaram a mulher que sou hoje; e se meu querido amigo Alex Cabedo diz em seu artigo no site Outonos que os homens não querem saber destas coisas, e que sonham com sua virgem pura e intocada, bem, as mulheres que forem sinceras, mesmo que apenas consigo mesmas, vão concordar que o olhar de adoração e a resistência sexual de um rapazinho faz maravilhas. Mas é para durar pouco.

Nunca vi um relacionamento de pessoas de idades muito diferentes dar completamente certo. Eu acho mesmo que um dos pontos cruciais de um relacionamento é o compartilhar de visão de mundo. Casais devem caminhar juntos para o mesmo lugar. A chance disto acontecer com pessoas de idades muito diferentes é mínima. E se acontece da mulher ser a parte mais velha do relacionamento, então a coisa piora. O pobre rapazinho vira gigolô, aproveitador de mulheres, ou simplesmente objeto de troça dos amigos. A mulher vira uma louca obcecada por sexo, que não consegue uma pessoa da sua idade e abusa de meninos. Não, não dura. E não é para durar. É como o verão, quente, sensual, e efêmero. Existe mesmo um filme, o Verão de 42, que mostra o impacto de um romance destes na vida de um menino. Impacto bom. Necessário, até. Mas não é para ser compromisso de vida.

Portanto, digo aos jovens que cruzaram minha vida: vocês encheram minha alma de doçura e alegria, e partiram em paz para os braços de suas futuras companheiras, espero que sabendo um pouco mais o que significa o encontro amoroso e respeitoso entre macho e fêmea. Eu nunca os esquecerei, guardo comigo lembranças maravilhosas. Faria tudo de novo.

Mas ainda aguardo, só, Aquele que Virá.

9.11.02



Eu sou uma borboleta outonal. Por vários motivos. Um deles, talvez o mais importante de todos, é que tenho a noção exata do preço a pagar por ser quem sou. Cedo ou tarde, a questão é que esta lição eu já aprendi. Saber que não se pode ter certas coisas, e que não se pode pagar certos preços, é uma lição que bota você com os dois pés na maturidade. Não há jovem que entenda isso.

Quando eu era jovenzinha, achava que o mundo era limitado apenas pelo que me era permitido ou não por meus pais. Como todo jovem, achava que eles eram a única barreira entre a Sue e a liberdade ampla, geral e irrestrita. E muitas vezes me impacientava com eles, como um cão que joga seu peso todo na correia, na tentativa de se ver livre dela. Hoje eu sei que a "correia" era para a minha proteção, tanto quanto para a proteção dos outros. Esta lição fica clara quando lemos os jornais hoje, e vemos uma jovenzinha que, para se livrar da correia, arrancou fora a mão que a segurava. E será devidamente tratada como uma "cachorra louca", Deus tenha pena de sua alma doente.

A questão é... limites não existem só de sacanagem. Se esta menina estivesse dentro dos limites de um ser humano saudável, jamais premeditaria um crime tão bárbaro, que vai de encontro a tudo que torna o homem HUMANO. Os limites existem para que não nos machuquemos demais, para que não corramos riscos que não podemos enfrentar, para que não destruamos barbaramente o corpo ou o coração de outro ser.

Eu hoje, então, aceito com mais prudência meus limites, e os testo com menos frequência e mais cuidado do que quando tinha 19 anos. Quase 20 anos depois, descobri que certas experiências DÓEM, e que certas dores são inúteis, não levam a lugar algum, a não ser ao divã do analista. Às vezes, terrivelmente, a lugares mais tenebrosos, como ao suicídio ou ao assassinato. Ou, ainda pior, à destruição de outrem. ESSE é um preço que não posso pagar, e não quero.

Vivo minha vida tentando derramar à minha volta as delicadezas que acho tornam nossa estadia neste planeta mais suportável. Já perdi as esperanças de ter estas delicadezas retornadas, não é por isto que as pratico. Elas são parte de quem eu sou, minha identidade, e não abro mão delas. Mas o caso é que -- nesta época de poucas delicadezas -- ser uma pessoa que as pratica sinaliza coisas engraçadas às outras pessoas.

O Fabio Danesi Rossi disse-o bem em seu blog, quando falou que homens que chamam mulheres de senhora e lhes abrem a porta e lhes dão passagem são imediatamente taxados de "otários". Amigo Fabio, não se iluda, as mulheres educadas e delicadas padecem sina semelhante. Muitas vezes, por exemplo, a mania que tenho de chamar todo mundo de 'amor' ou 'querido' me causa dores de cabeça. Seja por causa de atenções masculinas não desejadas, seja por fúria feminina menos solicitada ainda. Outras vezes, a atenção cuidadosa dada a um amante é tida como 'sufocante' ou 'dependente'... eu, justo eu, que já abri e abro todos os dias mão de coisas que me são tão caras... Abri mão DELE, veja só... e fiz das proverbiais tripas coração para que meu sofrimento não o incomodasse.

Pois que seja. Àqueles que sentem um frio na barriga cada vez que eu me aproximo, que pensam 'lá vem ela novamente'; àqueles que acham que podem abusar de um coração porque ele está de portas abertas; àqueles que não dão valor aos pequenos cuidados, por serem tantos, eu digo uma coisa: eu NÃO VOU me modificar, eu NÃO VOU sair do país, como o Fabio declara ter intenção de fazer, eu sequer pretendo mudar de vizinhaça; eu NÃO VOU deixar de ser quem eu sou, porque vocês estão incomodados ou escondem o sorriso irônico do aproveitador barato. Esqueçam. Mudem vocês de país, porque este é o MEU LAR, minhas raízes aqui estão fundas, e daqui só saio de cabeça erguida, por alguma aventura maior num outro lugar.

Jovenzinhos, aqueles meus amigos que me emocionam tanto, olhem bem nos olhos de sua borboleta e prometam: não comprometam seu eu por pessoa alguma, não se sintam estranhos, não se sintam menores, só porque alguma pessoinha resolveu alardear aos quatro cantos isto a seu respeito. Sejam como são, exatamente, respeitem suas naturezas, e a natureza daqueles à sua volta. Se houver alguma situação em que encontrem naturezas imcompatíveis, retirem-se mansamente, sem briga. Não se pode proibir uma ave de voar, nem pedir a um peixe que more na floresta. A natureza humana é tão diversa quantos as espécies animais, e muitas vezes nos deparamos com limitações que nos incomodam.

Aceitem suas limitações com tolerância, sempre tentando expandir seus limites aos poucos, sem forçar a musculatura da alma. Uma entorse destas dói bem mais que um estiramento muscular, acreditem, e leva bem mais tempo para sarar. Amem-se, e aprendam a amar a diversidade humana, e usar da mesma tolerância que tiveram com seus próprios limites em relação aos limites alheios. Não existe outra maneira de resolver os problemas sérios que nos afligem hoje, a não ser com muita tolerância, amor e delicadezas.

6.11.02



http://www.olhandodeperto.bio.br


Ah, mas como as borboletas são lindas! Agradeço as informações que descobri no site Olhando de Perto. É um site muito interessante para aqueles que gostam de vida pequenina. Desde insetos minúsculos até as vistosas borboletas multicoloridas.



Olhar de perto pode ser bom e pode ser ruim. Eu tenho como marca da minha personalidade olhar bem de perto as pessoas, quando gosto delas. Chegar bem perto, acalentar, abraçar, fazer cafuné, enfim, mostrar pelo tato, pelo brilho dos olhos, pelo calor da voz, que aquela pessoa é QUERIDA. Entretanto, eu padeço de excesso de empatia, e acabo sorrindo e sofrendo com a pessoa que amo, como se a alegria e o sofrimento fosse meu.

Quando o caso é de alegria, e um amigo meu divide uma felicidade comigo, ai, que festa!! O coração pula e batuca entusiasmado, minha boca parece se rasgar em sorrisos. A alegria de um amigo é como um vinho para a alma. Inebria meu coração de felicidade.

O problema é quando testemunho a dor de um amigo. A dor me rasga o coração junto, e a impotência no minorar desta dor causa um desconforto a mais. Ultimamente, para meu desespero, parece que todas as pessoas que amo estão sofrendo.

ELE, o homem que foi, está sofrendo. Não me diz porque, e eu não quero perguntar. Tenho medo da resposta, que me mandaria de volta para aquele redemoinho de dor aguda do qual acabei de sair. Não, não quero entrar de volta naquela Iron Maiden de pregos afiados. ELE se cala e eu me calo também. Mas eu SINTO o sofrimento dele e sofro junto. Inescapável.

Tenho um amigo que sofre porque recebeu ataques por pensar diferente de pessoas que ele considerava amigas. Sofre por diversas outras perdas além deste desapontamento. E lá vai a Sue, doendo do lado. Sem conseguir consolar.

Outro amigo, meu Doce, sofre por um amor que não pode expressar, entalado porque foi devolvido pelo remetente, e faz cara e voz de brabo enquanto o coração dele fica ganindo do lado do meu, feito cachorrinho recém-desmamado. E o coração da velha borboleta sangra, sangra.

Pessoas de minha família sofrem. Pela velhice que chega, por aqueles balanços de vida que parecem ser a atividade constante das pessoas que passam de uma determinada idade. Pelos fracassos, que parecem maiores do que realmente foram, pelos sucessos, que hoje parecem menores. E eu com a cabeça estourando de dor, sem poder fazer com que estes se enxerguem como eu os enxergo.

Ai, Pai do Céu, tem horas que este impulso que colocastes no meu coração na direção do outro, este ímpeto de curar os que amo, parece que isto é um fardo pesado demais para carregar. Não é à toa que minha coluna está tão doente. Pai, Tu mandastes Simão para ajudar Teu Filho a segurar a cruz, e a mim parece que mandastes mil cruzes, sem nenhum Simão. Eu repetidamente me espanto com a confiança que depositas em mim, que sou tão imperfeita, meu Pai... Dá-me a força de que necessito para retirar todas estas cruzes do caminho daqueles que amo, ou então mostra a eles o que é necessário para conviver com elas. Antes que eu me destrua de dor impotente.

Nos últimos dias, olhar de perto tem sido a maior das torturas. Que venham então as eternas confortadoras, as borboletas. E mais um agradecimento ao site que me proporcionou imagens tão belas.




4.11.02

Honrando os Mortos

Este final de semana foi especial... foi o "feriado" (!!!) de Finados, e um bando de gente passou nos cemitérios para levar flores frescas para as covas de seus entes queridos que já partiram daqui. Visita concluída, mais um ano passará -- na maioria das vezes -- antes que estes mortos sejam lembrados novamente.

Eu nunca vou a cemitérios, a não ser na ocasião dolorosa da partida de alguém que estimo. Tenho uma maneira diferente, e mais constante, de honrar meus mortos. Eu converso com eles. Lembro de tudo que me porporcionaram. Eu os reverencio e os amo. Meus mortos não estão em uma cova, virando pó. Estão no meu coração e na minha lembrança, sempre.

Minha mãe, eu lembro, sinto ainda como você cheirava bem, escuto a sua voz macia; Vó Calita, eu era pequenina, mas lembro da sensação gostosa de deitar a cabeça no seu colo, ouvir uma história da carochinha e receber minha bênção antes de dormir; Madrinha, eu não esqueci da sua devoção ao rosário, de como eu acordava -- quando dormia com você em sua cama -- com a luz de seu abajur e o sussurrar das suas orações; Vó Assunta, recém-partida, não esqueço o frescor de pêssego de sua pele, e de sua inerente elegância; mulheres da minha família, eu sinto a falta de cada uma, mas também sinto cada uma dentro de mim, percebo em mim a influência de cada uma de vocês. Paz na sua jornada, preparem a minha chegada.

Vô Pedro, com tenho saudades dos passeios que dávamos, da sua paciência em identificar pacientemente todas as espécies de árvores pelas quais passávamos; Tio Paulo, como meu peito aperta de saudade quando lembro do seu sorriso generoso, do seu olhar brilhante, do abraço apertado; Irmãozinho Pedro Paulo, levado tão pequenino, antes que eu pudesse conhecê-lo, tenho por você um amor forte, sempre conversamos quando eu era criança, lembra?, você era meu confidente em tudo, eu sabia que você estava sempre junto de mim, espero que esteja hoje bem próximo à nossa mãe, atenuando a saudade que sei que ela sente dos filhos; Vô Emílio, que eu também não conheci, mas que mamãe dizia que seria meu favorito, abençôa sua neta. Homens de minha família, guardem a casa de nossos ancentrais, protejam a filha da vossa semente, dêem a ela força e sabedoria para viver com retidão e honradez.

Meus amados, todo dia para mim é Finados, porque vocês não estão aqui. Olhem por mim.

24.10.02

Mais Testes...



Your magical style is Faery.

What type of Magic do you work?. Take the Magical Style Quiz by Paradox



Congratulations, you're a Pillywiggin, a trouping flower fae.
What kind of female faerie are you?
Take the female faerie quizby Paradox.




You are a muse.

What legend are you?. Take the Legendary Being Quiz by Paradox

Eu adoro estes testes de Internet... O resultado é sempre intrigante, pelo menos para mim... este eu peguei no CryWolf da Larinha... e o resultado dela deu Lobisomen, veja só! Beijo, minha Lobinha linda... tenho saudades...

23.10.02

Hoje eu queria fazer uma homenagem

É uma homenagem simples, sem grandes repercussões, é apenas a homenagem de um coração já outonal a alguns corações em plena primavera. São jovens, são bonitos, são especiais estes corações. Quando eu os visito, em seus blogs, em seus e-mails, conversando ao telefone, algumas vezes até mesmo olhando em seus olhos brilhantes de inteligência e pureza de alma, eu me quedo a contemplá-los, embevecida...

Que lindos, que lindos, que lindos são vocês todos!! Evandro, Bruno, Felipe, Inês, Félix, Larinha, Gabriel, Jo, Martim, Pablo... Vocês todos me emocionam até as lágrimas, enchem meu coração de esperança para o futuro, pois não importa o quanto ele seja negro e assustador, eu sei que as gerações que se seguiram à minha produziram algumas pessoas melhores que eu. Eu sei que corações ardentes e apaixonados vão transmitir àqueles que ainda não nasceram os valores que importam. Contemplo, humilde e trêmula, através de vocês, a Inteligência que os criou. Como eu amo vocês por isto!

O que causou este espasmo de corujice? O Felipe, querido Felipe Ortiz, menino brilhante, sem nem saber que estava falando direto comigo, serviu de enviado e me entregou uma lição muito importante. Eles todos fazem isto o tempo todo, meus amores, tão jovens e tão talentosos... Mas tenho de deixar aqui o texto de Felipe. Tomara que sirva também de lição a mais alguém...

Sobre a Verdade e o uso da palavra

As pessoas são maiores do que suas idéias. A mente mais habituada ao erro ainda preserva o conhecimento da Verdade como uma possibilidade, pelo simples fato de que a mentira é obrigada a recorrer a verdades (fragmentos selecionados da Verdade) para fazer-se verossímil e se afirmar, perante o próprio sujeito e perante seus interlocutores. Ora, quem é suficientemente capaz de escolher os aspectos da Verdade que dão força a seu equívoco é a fortiori capaz de apreender a Verdade inteira. Isto deveria ser suficiente para que reconhecêssemos a manifestação potencial do Absoluto também em um oponente embriagado pela própria relatividade. E nos comportássemos como convém, diante de um ícone quebrado.
É preciso discordar claramente, sem profanar. É necessário denunciar o erro à viva voz, sem causar escândalo. O oposto do erro não é a Verdade; é o erro oposto. A Verdade é o que paira acima dos erros. Isto é diabolicamente sutil.


Eu nunca vou poder agradecer o suficiente, doce Felipe. Vou pensar muito e muito a respeito disto, e tentarei não errar mais. Muito, muito obrigada, à você e aos demais jovens que têm enchido minha vida de alegria.

Beijos carinhosos a todos.

Sue


22.10.02

Morri e voltei

As dores do amor são das mais difíceis de suportar. Quem tem acompanhado meu blog sabe que ultimamente a borboleta tem andado de asa caída... Sem nenhum exagero retórico, quase morri de dor. Não é facil se abrir o peito, rasgar as carnes, tirar o coração e oferecê-lo em uma bandeja de prata para o amado... e ouvir um Não, obrigada. Saber as razões deste não, entendê-las, respeitá-las, amar aquele homem ainda mais por elas, nada disso me ajudou na hora de enfrentar a dor.

Então, fiz o que toda fêmea faz desde que Lilith foi preterida em favor de Eva: gemi, chorei, ouvi música romântica, chorei mais um pouco, enchi o saco dos meus amigos, chorei, chorei mais ainda, perturbei meus amigos DE VERDADE, chorei, escutei mais música, me debulhei em lágrimas, me enchi de sorvete e chocolate, chorei e chorei. Esgotei a dor, bebi desta bebida amarga até a última gota. Enfim, acabou.

Agora, o que sinto por ELE está transformado em parte da tessitura da minha alma, e nunca vai ser tirado de mim. Ele é meu, esta história é minha, me fez um pouco mais pronta para receber aquele outro que virá. Como uma colcha rebordada de pedrarias, cada lágrima cintila como um diamante em meu olhar; o carinho da mão de cada amigo deu mais brilho aos meus cabelos; a frustrada espera por ele deu-me tempo para amaciar meu temperamento, aceitar um pouco mais minhas imperfeições. Cada esperança perdida virou uma flor que tranço em meus cachos, cada noite insone virou um manto feito de luz de luar, com que cubro minha nudez de corpo e de alma. Tudo, tudo o que passei me tornou mais forte e mais suave, e já passou.

Agora, sento na pedra mais elevada do cume da mais alta montanha deste coração vazio e cansado, e espero que aquele que virá tenha forças, mais forças que aquele que se foi, de subir até aqui. Ainda tenho muito medo de descer, e enfrentar a dor de novo. Não sei se aguentaria. Talvez, se escutar a voz daquele que virá a me chamar, ainda me reste coragem de encontrá-lo no meio do caminho.

Não sei o que virá, não sei quem virá, que voz terá, que mudanças causará na minha vida. Só uma coisa eu sei hoje: meu coração está pronto para amar de novo.





14.10.02

Flores pisoteadas e borboletas de asas amassadas

Ai, com que facilidade um pai ou uma mãe marcam a frágil alma de uma criança... ontem, foi o dia da criança feliz, hoje foi o dia da ex-criança machucada. Machucada pela intolerância dos pais, por seus tapas, por sua tortura psicológica, por sua crueldade... até pelos seus silêncios.

Pais, mães, saibam que seus filhos são tesouros emprestados a vocês... e este empréstimo vai ser cobrado com juros e correção monetária por Aquele que emprestou. Quebrar o espírito de uma criança é um dos crimes mais vis que um adulto pode cometer. E muitas vezes não há volta, pois a criança acredita em tudo que seus pais dizem, mesmo quando eles dizem que ela não existe, que ela não tem valor. Ela acredita, e age de acordo, tornando-se morta e invisível para si mesma.

Eu fui filha de pais amantíssimos, e carrego dentro de mim esta segurança. Mas sei de belas mulheres que são borboletas de asa amassadas e flores pisoteadas por pesadas botinas de desamor. Eu as amo e choro por elas. Não sei se poderei salvá-las, pois a chave que abre a porta da cadeia está em suas mãos, e elas não enxergam. Mas não pretendo parar de tentar.

Amar dá muito trabalho, mas maltratar dá mais. Vamos parar com isso...



13.10.02

Não posso esquecer que o dia 12 também é dedicado à mulher mais especial que já existiu... a doce Senhora que as crianças chamam tão acertadamente de Mãezinha do Céu. Esta Senhora, doce, amiga, protetora de todos nós, grande aliada nossa, tem muitas faces, para poder estar acessível a todos os seres humanos. Eu a vejo assim: iluminada, com os olhos sempre voltados para o Alto, e as mãos suplicantes indicando nosso mundo. Sim, Querida Mãe, precisamos cada vez mais da sua ajuda...


Eu ia escrever um texto sobre o Dia da Criança. O dia passou, eu não escrevi. As crianças me perdoam, elas sabem que existem coisas mais importantes que escrever posts comemorativos: o melhor mesmo é comemorar DE VERDADE, comendo coisas gostosas, subindo no colo dos pais, brincando muito, indo ao cinema. Então, saí para almoçar com meu paizinho, comemos coisas gostosas (de gente grande, mas gostosas), voltamos para casa, brincamos no laptop dele, eu o enchi de beijocas, tiramos uma soneca com os gatos e vimos um filme bonito na TV.

Gente, foi um dia da criança MUITO BOM!! Espero que o de vocês também tenha sido, principalmente o de dois amigos que estão embarcando desde ontem em uma emocionante aventura! Emocionante e perigosa, como toda aventura do coração. Meninos, a Borboleta está torcendo por vocês!

Beijos cheios de doçura da Sue


6.10.02

É muito esquisito quando sentimos que as pessoas que estão a nossa volta não têm substância, e que as pessoas mais presentes e concretas não estão aqui. É uma sensação de estranhamento, de que a sua própria forma corpórea ficou transparente – e ao mesmo tempo, viva, sente estímulos de lugares distantes, mas não os daqui. Eu abraço amigos que nunca vi, beijo amigas que só conheço da tela iluminada do computador, tenho filhos e filhas, irmãos e irmãs, que não conheço.

Aqui à minha volta parece que não há pessoas, porque eu não as vejo e – talvez por causa disto – elas da mesma forma não me vêem. Serão elas imateriais ou serei eu? Nenhuma coisa nem outra. O que verdadeiramente ocorre é que minha alma saiu a passear, e encontrou jardins de delícias alhures. Meu coração abriu-se inteiramente para corações que só vislumbro ao longe. Meu espírito estica-se para fora do corpo, em busca da convivência com espíritos irmãos. Nem sempre estes espíritos irmãos estão ao alcance da mão, mas estão certamente ao alcance de uma mensagem eletrônica.

Um exemplo? As pessoas que me vêem caminhar pelas ruas, que assistem minhas aulas, as pessoas com quem eu falo, brinco, faço graça, brigo, grito, abraço, estas pessoas não enxergam, mas eu hoje sou duas pessoas. Eu e Ele. Meu amado distante, eu sinto a ponta de seus dedos deslizando pelo meu pescoço, meus ombros, descer pelo meu colo e roçar carinhosamente pelos meus seios. Sinto seu abraço, o calor de seu corpo, escuto o tenor leve da sua voz vibrando no pé de meu ouvido, baixinho. A palma da minha mão sente a maciez cheia de textura dos pelos do seu peito, meus dedos desenham o formato da sua boca no ar, meus lábios formigam como se já tocassem os seus. Minha pele arrepia, com se já estivesse encostada na sua.

Esse tipo de sentimento é antigo, o de amar à distância – que o digam Abelardo e Heloisa! – mas hoje ele adquiriu uma velocidade que desnorteia a maioria das pessoas, e as faz pensar que o sentimento é falso ou fantasioso. Nada mais longe da verdade. Conheço homens e mulheres que foram enganados – às vezes por anos – por um rosto bonito, por pernas longas, por uma boa cama, e levam o maior susto quando finalmente enxergam através disto e descobrem uma pessoa da qual na verdade não gostam nem um pouco. Quem não conhece uma ou duas ou trinta histórias assim?

No entanto, não conheço muitas histórias de pessoas que foram enganadas por aquilo que um contado de Internet escreveu... pelo menos não por muito tempo. Conheço histórias de amores eletrônicos que não resistiram à distância, às dificuldades, mas não conheço uma única pessoa que tenha dito que “ela(a) não era nada daquilo que suas cartas diziam!” Na verdade, enganar pessoas na Internet só em salas de bate papo de cunho declaradamente sexual, onde as pessoas largam suas fantasias todas em cima dos outros participantes. Adolescentes viram quarentões, senhoras viram mocinhas, homens viram mulheres e vice-versa. Mas a propaganda enganosa é muito mais difícil – e muito malvista – quando a troca é de idéias.

Uma amiga já me perguntou: “Como posso ter saudade de algo que ainda não fiz?” Não, não é saudade. Saudade é rememorar com prazer e melancolia algo que já se passou e que está distante. Esta ânsia de busca, esta vertigem, este desespero é FOME. Eu sinto fome por ELE, quero estar perto, conversar, explorar esta alma que me parece das mais bonitas que já vi... E minha amiga também parece ter a mesma vontade em relação ao “Eledela”. O nosso problema é que – de um lado – aquele a quem amo não quer retribuir a afeição, em parte por não poder fazê-lo e em parte por não acreditar no sentimento em si. No caso de minha amiga, ele acredita no sentimento, com a ressalva dos desconfiados, mas tem muito medo da distância, que já lhe fez perder um amor...

Minha querida amiga, sabiamente, definiu muito bem nossa situação : “Eu vou ver se acho minha armadura e meu escudo.. entrei sem nada no meio de uma guerra que ele está travando com ele mesmo... e os estilhaços estão voando em mim.” Ah, meu amor, como você está certa!

29.9.02



É o Lobo!

Sou do Exército de Pedro. Quem leu os livros de Monteiro Lobato e o texto de Alexandre Soares Silva no www.digestivocultural.com sabe o que isto significa. Pra quem não sabe, vou dar a minha versão dos fatos. A criança, falando em um sentido (suspiro), bem, existencialista da coisa, é um ser infinitamente superior ao adulto que ela se torna. O que chamamos de “coisa de criança” geralmente é o que de melhor existe no ser humano. Quer alguns exemplos? O sentimento de maravilha diante das pequenas coisas, capacidade de concentração sem esforço, doação absoluta ao que se está fazendo, alegria sem razão de ser, confiança implícita, elasticidade do corpo e do coração. Precisa dizer mais?

Pois então. Sou do Exército de Pedro. Faço parte daquele grupo de pessoas que luta ardentemente para continuar criança. Mas – ora bolas! – todo mundo olha pra mim e vê que já sou gente grande. Tenho trabalho de gente grande, pertenço a agremiações de gente grande, estudo assuntos de gente grande. Nos últimos vinte e cinco anos ninguém me viu subir em uma árvore ou me jogar do alto de um trampolim ou dar uma estrela. Onde está minha criança? Olhe bem dentro de meus olhos. Não, de longe não. Venha mais perto. Eu ajudo, deixa eu tirar estes óculos de gente grande. Olha bem. Viu o brilho no fundo dos meus olhos? Pois é, esse é o brilho da estrela onde mora minha criança, desde que li O Pequeno Príncipe de Exupéry pela primeira vez. A diferença é que minha criança não tem uma rosa só, tem um jardim fantástico que aprendeu a cultivar com Tistu, O Menino do Dedo Verde de Maurice Druon.

Mas não pára por aí não. Minha criança tem também uma canastrinha como a da boneca Emília, de onde tira coisas estupendas; e um monte de amigos dos mais maravilhosos: fadas, piratas, crianças que não querem crescer, sereias, deuses do Sol e da Lua, Leões que morrem e vivem de novo, animais falantes, além, é claro, de elfos e hobbits que conheceu na Middle Earth de Tolkien. E uma vitrola de onde saem músicas lindas, e uma estante mágica com livros de ilustrações fantásticos e todas as fábulas que os Irmãos Grimm compilaram, além de – maravilha das maravilhas! – um aparelho de televisão onde só passam cartoons BONS! Josie e as Gatinhas, Os Flintstones, Laboratório do Dexter, Os Impossíveis, Penélope Charmosa e a Quadrilha de Morte, todos desfilam pela tela o dia inteiro, alegrando a vida da minha criança. Essa criança que mora numa estrela que se reflete no fundo dos meus olhos. Sou, definitivamente, sou do Exército de Pedro.

Quem tem (outro suspiro) mais de trinta como eu, lembra-se de uma penca de cartoons fantásticos da Hanna-Barbera, que infelizmente hoje em dia não passam mais. Eu adorava vários deles, mas dei por estes dias para lembrar do Lobo Bobo. Lembram, balzacas? Aquele lobo magricela que vivia correndo atrás de um carneirinho minúsculo que era protegido por um cão pastor gigantesco com uma franja que lhe cobria os olhos. O Lobo maquinava, tentava de tudo para pegar o petisco lanudo, mas na hora “H” o pequeno gritava “É o Lobo! É o Lobo!” E lá vinha o Cão, e lá ia o Lobo pelos ares gritando “Você não tem esportiva!”
Muito bom! Como diz o Calvin, gosto de humor físico, tortas na cara e bigornas caindo. Mas a lembrança deste cartoon em particular não é devida ao fato dele ser um de meus preferidos, ou de ter um valor maior que os outros na minha memória. Não. Foi por causa da imagem do carneiro, do lobo e do cão pastor.

Parênteses

Tenho um Amigo. Nossa!, dirão vocês, ela tem um amigo! Que chocante! Pois é, tenho um Amigo. O Melhor de todos os amigos. Epa! Espera aí, antes que vocês comecem a levantar e ir embora, não vou pregar nada, não vou pedir dinheiro por uma causa, nem vou falar nada a respeito do meu Amigo. Basta que vocês saibam esta coisa a meu respeito: tenho um Amigo.

De volta à nossa programação

Àqueles que lembram do Lobo Bobo, eu pergunto: onde estava o pastor? Víamos o lobo se esgueirando por toda a parte, o carneirinho inocentemente vagando por aí, e a presença atenta e protetora do cão. Mas onde estava o Pastor? Será que ele estava, como o Imperador – Pai do Leão Aslan nas Crônicas de Narnia de C.S. Lewis – “do outro lado do oceano”? Onde andava este Pastor aparentemente tão displicente, que deixa seus carneirinhos à mercê de um lobo faminto? Que Pastor é esse que entrega seu rebanho à própria sorte?

A questão central é: estava mesmo o rebanho entregue à própria sorte? Não víamos, episódio após episódio, que quando tudo parecia perdido o cão aparecia e triturava o lobo? Esse cão aparecia do nada, e o lobo imediatamente se lascava! Por isso o carneirinho era tão confiante. Ele bem sabia quem o protegia. Ele sabia que o lobo nada podia contra aquele cão. E também sabia que o cão jamais o abandonaria. Bom para um carneiro saber tudo isso, né?



Carneiros e Lobos

Outro dia conversava com um amigo – não O Amigo, um amigo, que infelizmente não pertence ao Exército de Pedro, pouco soube o que era ser criança de verdade, e hoje é um adolescente sério, sério, que lê Nietzsche e acha que tudo é em vão – e este me dizia que não acreditava em Deus, que não era religioso por ser por natureza um lobo e não uma ovelha. “Qual o problema em ser uma ovelha?” perguntei. Ao que ele respondeu “Sue, você também não é um a ovelha, apesar de querer ser”.

Parei tudo. Pensei. É, não sou uma ovelha. Posso ser muitas coisas, mas dentre minhas qualidades ocultas e meus defeitos patentes não se encontra nenhuma característica de ovelha. Não possuo nem um átomo de mansidão, nem sou indefesa, nem fico quietinha quando me levam para o matadouro. Muito pelo contrário, a simples sugestão de tal coisa me faz gritar e espernear feito uma louca. Matadouro uma ova! Eu sou agressiva e intensa, tanto nas coisas que gosto quanto nas coisas que não gosto. Entre o preto e o branco aceito no máximo uns quatro tons de cinza. E deixa alguém me pisar nos calos (metaforicamente, pois não tenho calos de verdade)! O sangue calabrês de minha avó paterna me sobe à cabeça, e aí não me responsabilizo mais. Menos ovelha, impossível. Será que eu sou um lobo?, pensei desolada...

A opção cão pastor

Meu amigo já esfregava as mãos e afiava o garfo e a faca, pensando: agora ela está perdida! Não sai desta. Só que eu lembrei de uma coisa. Perguntei a ele: “De onde vêm os cães?” “Como?!?!”, perguntou ele meio confuso. “De onde vêm os cães?” repeti. “Ora, eles vêm dos lobos.”

Não é que vêm mesmo? Olha só, eu estava tão triste, me sentindo obrigada a optar entre ser uma ovelha, fraquinha, indefesa – e boa – e ser um lobo, forte, astucioso – e malvado. Mas me lembrei que os cães são lobos que escolheram ser fortes, astuciosos – e bons. Esta opção do malvado forte contra o bonzinho fraco é uma mentira. As pessoas são fracas ou fortes – ovelhas ou lobos. Tanto as ovelhas quanto os lobos, uma hora ou outra, têm de escolher se vão ou não ser bons. Se você nasceu lobo, não se desespere. Treine para ser um Cão Pastor quando crescer. E saia por aí protegendo as Ovelhinhas e triturando os Lobos Maus.


Em tempo

Aos membros de sociedades protetoras de animais, já declaro logo: o Lobo a que me refiro é o Lobo dos contos de fadas e fábulas. Nestes lugares ele aparece com esta coloração de astúcia mesclada com maldade. Nada tenho contra o animal lobo, que é leal à família e afetuoso com seus filhotes, e se come ovelhas, bem, nós também comemos. Agora, com licença, meu surto de La Fontaine passou e está na hora do lanche. Bom apetite!





26.9.02

Queria aproveitar a oportunidade e agradecer à minha querida Marguinha pelas belas imagens de borboleta que ela me enviou... estou usando, viu, amiguinha!

Uma beijoca da Borboleta para você, que mora aí neste lugar tão lindo!

Adoro ganhar presentes! Especialmente presentes que mostram a procupação de agradar àquele que recebe. Muitos presentes são dados por obrigação, são coisas sem significado. Mas uma pessoinha querida se deu ao trabalho de fazer o banner abaixo e me enviar... este para mim é um presente sem preço! É mais que presente, é carinho personificado. Obrigada, minha Lobinha! Um beijo comovido e agradecido da sua Brabuleta Azul!

Um beijo no seu coração!

25.9.02

Declaração de Amor aos Carneiros Pretos

Queridos amigos, cada vez mais queridos:

Estas senhoras, supostamente chamadas de Acelina Maria Nóbrega Moreira e Silmara Adib Lins, saídas sabe Deus de que bordel baixo da periferia de São Paulo, desenvolveram uma obssessão sexual -- primeiramente pelo Dennis, depois pelo Alex, e finalmente por MIM (!?!?) -- e não querem, apesar de pedidos educados e não tão educados que já foram feitos, deixar ninguém para lá. O tal deus que estas criaturas adoram deve ser um chifrudo qualquer, que as incendiou com uma sexualidade doentia, que as faz buscar o sexo virtual do tipo mais grosseiro nos chats da UOL, a pretexto de levar "salvação" para lá. Tenho recebido via e-mail todo o tipo de história a respeito destas senhoras, que me arrepiam os cabelos! E elas preferem os homens com mais de quarenta e os com menos de 25 anos...

O ataque destes seres abissais, no entanto, acabou por ser uma bênção disfarçada. Nunca me sinto mais feliz ou amada que quando meus amigos se levantam indignados para fazer minha defesa. O carinho de vocês, meninos, é fonte de alegria e felicidade inesgotável. Cada comment, cada post, cada indignada defesa do Alex, cada fina ironia do Alexandre, cada palavra de apoio do Dennis (com DOIS ENES!) e do Matusca, cada carinhoso comment do Félix, me fazem sorrir e agradecer ao MEU Deus por ter colocado pessoas do quilate de vocês no meu caminho. E de ter feito um contraponto tal -- mostrando toda a baixeza do mundo presente nestas mulheres ditas "religiosas" -- para que eu saiba exatamente o valor de cada um. Eu sei quem sou. Sei quem elas são, mas descubro cada dia mais maravilhada que pessoas encantadoras VOCÊS são.


AMO AMO AMO AMO AMO AMO AMO MUITO VOCÊS!!
Beijos em cada um da sua Butterfly
Sue

Meus amigos do Asa de Borboleta, dêem uma olhada no tamanho da baixaria, no blog Carneiro Preto!

http://karpreto.blogspot.com

24.9.02

Eu sou de um certo tipo de mulher totalmente fora de moda nestes dias de pompoarismos e orgasmos múltiplos. Sou uma mulher romântica. Sou uma daquelas que nem titubeia em desmarcar um encontro marcado com a melhor amiga, porque o namorado não está se sentindo bem, e ir correndo até a cozinha preparar um cházinho ou uma sopa.

Esse tipo de mulher consegue milagres. Constrói castelos e pontes e torres e estradas mesmo tendo recebido do amado apenas um fiapo. O problema é que, enquanto decoramos nossos castelos com as mais lindas obras de arte, e pavimentamos nossas estradas com tijolos de ouro, e plantamos trepadeiras mágicas em torno de nossas torres, o amado concreta e friamente sabe ter dado apenas um fiapo.

Vivemos do fiapo, e o fiapo torna-se a razão de nossa existência. Mas continua fiapo, inescapavelmente fiapo. E toda a montanha de outras coisas que o amado é e não nos deu pode se transformar em uma avalanche que soterra nosso fiapo. Resolvi escapar com o meu fiapo antes que ele seja soterrado. Guardo o fiapo no fundo do coração, e sigo minha vida amando a ELE e a meus amigos queridos todos, até que apareça um homem que queira dividir todos os seus fiapos comigo.

Enquanto isso, a presença DELE canta no meu sangue.


A Case of You
Joni Mitchell


Just before our love got lost you said,
"I am as constant as a northern star."
And I said, "Constantly in the darkness,
Where's that at?
If you want me I'll be in the bar."

On the back of a cartoon coaster
In the blue TV screen light
I drew a map of Canada
Oh Canada
With your face sketched on it twice

Oh, you're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh I could drink a case of you, darling
And I would still be on my feet
Oh I would still be on my feet

Oh I am a lonely painter
I live in a box of paints
I'm frightened by the devil
And I'm drawn to those ones that ain't afraid

I remember that time you told me, you said,
"Love is touching souls"
Surely you touched mine
'Cause part of you pours out of me
In these lines from time to time

Oh, you're in my blood like holy wine
You taste so bitter and so sweet
Oh I could drink a case of you, darling
Still, I'd be on my feet
I would still be on my feet

I met a woman
She had a mouth like yours, she knew your life
She knew your devils and your deeds
And she said, "Go to him, stay with him if you can
But be prepared to bleed"

Oh but you are in my blood
You're my holy wine
You're so bitter, bitter and so sweet
Oh, I could drink a case of you, darling
Still I'd be on my feet
I would still be on my feet

22.9.02



A Humanidade e as Borboletas

A definição do que é um ser humano tem escapado igualmente aos grandes pensadores e ao homem comum. Sabemos todos o que um homem não é, mas quando paramos para pensar no que SOMOS, as definições falseiam. Somos filhos de alguém, mulheres e maridos de uma outra pessoa, somos filhos, somos sempre algo em relação a um outro. Diversos algos, ao longo de nossa existência, coisas que só determinam parcialmente quem somos. Mas e nossa ESSÊNCIA, qual é? O que distingue absolutamente um ser humano de uma coisa não-humana? O ser humano sente. Bem, quem tiver animais de estimação em casa saberá imediatamente que isto não é uma prerrogativa humana. O ser humano ama. Bem, os cães também amam, e os gatos. O que, oh!, O QUÊ torna o homem tão claramente distinto dos outros animais?

O ser humano é o único animal com a audácia de tentar transcender a morte. Tem consciência da sua própria mortalidade e procura transpor o abismo entre a animalidade efêmera e a Eternidade usando a ponte da Cultura. Toda a produção cultural, desde as pinturas nas cavernas, tem o objetivo último deixar sua marca eterna, em última análise enviar uma mensagem às gerações futuras: “EU estive aqui, e esta é a minha mensagem!”

Todo o artista, todo aquele que produz cultura verdadeira, está – tal qual batedor explorando terreno desconhecido – testando os próprios limites de sensibilidade. Os artistas verdadeiramente grandes arrebentam o próprio coração e a própria alma para avançar os limites de toda a humanidade. Todos nós nos tornamos maiores através das obras de Bach, Michelangelo, Shakespeare. Artistas verdadeiros alcançam novos patamares de humanidade, para que o rebanho venha vagarosamente atrás, lentamente deixando de ser de barro e tornando-se verdadeiramente os homens divinos que Deus planejara.

Estes batedores que mapeiam terreno desconhecido enfrentam questões morais de natureza muito diversa do rebanho que fica protegido e cuidado no terreno bastante familiar. Como atletas do espírito, levam ao limite a dor, o desespero, o lirismo, a beleza, a feiúra, tudo que está na composição de um ser humano. Não há buraco na alma que não seja explorado, verme debaixo de pedra que não seja cutucado. Alguns enlouquecem nestas explorações, outros se suicidam, outros descem ao abismo e não voltam. Mas nada disto invalida a busca. Alguns efetivamente tornam-se gigantes, e enobrecem a todos os outros.

A grande tragédia da modernidade é que o homem comum esqueceu a que custo a sua humanidade foi estabelecida. Arrogante, toma para si méritos que não são seus, e não honra mais o artista como portador do fogo divino. A mediocridade agora é paradigma, e aqueles que põe a mochila às costas e vão explorar a alma humana são “loucos”, “cães doentes”, “pecadores”. O homem médio perdeu a capacidade de reconhecer a grandeza de outrem, e toma sua baixeza como medida para o mundo.

Enquanto isto, há os seres humanos que verdadeiramente buscam o Alto. Estes fazem como as borboletas, que ficam 20 dias transformando a substância de si mesmas, para voar uma semana e morrer. Esta autoimolação pela beleza e pela liberdade de voar com as próprias asas, é, na minha opinião o maior Dom de Deus aos homens, e aqueles que não têm a força e a capacidade necessárias para obter este Dom, deveriam ficar em respeitoso silêncio e saber que sua paz de espírito e sua moralidade foi conquistada pelo sangue destes poucos.

Mas a humanidade não é mais o que foi. E parece cada vez mais distante do que deveria ser.

17.9.02



Boris Valejo foi um dos primeiros que me ensinou que mulheres devem ter asas de borboleta.



Delicadezas

Hoje foi um dia de pensar em delicadezas... sensações que eu guardo dentro de mim desde muito menina, ou mais recentes. O sentimento de segurança, de “agora posso dormir”, quando eu ouvia o “shhk-shkk” que as coxas da minha mãe faziam, roçando uma na outra, quando vestidas com meias de seda, voltando de uma festa. A gargalhada do meu pai. O cheiro do churrasco que ele fazia. Passear de carro deitada no banco de trás, vendo as nuvens passarem rápido.

O bolo de queijo da minha tia. Brincar com filhotinhos de cães e gatos. Deitar no colo da minha mãe. Ver um botão de rosa abrir nas roseiras da minha avó. Ouvir os contos de fada que ela me contava antes de dormir. Brincar de boneca. A delícia de pentearem meus cabelos. Fazer e receber cafuné. Ficar quietinha, escutando meu coração bater. Ler. Desenhar. Ouvir música. A primeira mordida em um fofo pudim de claras. Canções de ninar. Andar de mãos dadas.

Beijo na testa, beijo na ponta do nariz, beijo na bochecha, beijo. Sentar sozinha na praia, à tardinha, e escutar as ondas. Ganhar um presente que eu queria muito. Café da manhã na cama, no dia do meu aniversário. Ajudar a mãe a bater o bolo, e poder lamber a colher de pau depois. Brincar de massa de modelar. Enrolar brigadeiro.

O primeiro beijo do amado. O olhar especial, que ele reserva só para mim. Falar coisinhas sexy e amorosas ao telefone. Receber flores. Tomar sorvete no mesmo pote, revezando a colher. Usar lingerie de seda e renda. Estrear uma roupa nova. Esperar por uma festa. Salto alto. Dançar agarradinho.

Sensação de dever cumprido. Gavetas arrumadas. Sachês perfumados. Banheiro recém lavado. Lençóis recém trocados. Cheiro de lavanda. Passar hidratante no corpo. Deitar em uma cama macia, depois de um longo dia de trabalho. Um banho de hidromassagem. Cabelos sedosos e limpinhos, roçando o pescoço e as costas. Fazer a manicure.

São sensações e lembranças que me mantém inteira, quando pessoas à minha volta querem me desestruturar e convencer que – ao invés possuir asas de borboleta – devo tornar-me cinza e sem graça, cheia de regras e de “não podes”, sem gozar a vida, os amigos, as coisas belas. Para estas pessoas, isto é coisa de cadelas doentes. Para mim, é coisa de gente feliz. E, quanto mais eu vivo, quanto mais o tempo passa, mais preciosas estas pequenas delicadezas se tornam, mais inteira eu fico, e mais convencida: minha vocação é ser e fazer feliz.

15.9.02



Homenagem

Com todo o carinho e admiração, um pequeno presente ofertado ao meu amigo Dennis Pimentinha, para que ele saiba que ele é especial. Vamos em frente, Dennis, continue a pintar o mundo com suas cores fantásticas, assustadoras e maravilhosas, com o talento que só você possui. Deixe as criaturas do abismo falando sozinhas!

14.9.02

Coração, bate-bate. Respiração acelera. Pele arrepia. O sangue pulsa. O meio das pernas se umedece. Ela pressente a sua chegada. Com cuidados de Sherazade, banha-se em óleos, massageia, perfuma, escolhe sedas e rendados, música, comidas. Ele vem, ele vem. O pensamento lhe causa um calafrio que desce pela espinha e lhe esquenta as ancas como se ele já a tocasse ali.

Ela passa o dia em doce expectativa, seguindo a rotina de sempre e sorrindo para si, a imaginar o que cada um com quem se encontrava diria se percebesse as labaredas que lhe ardiam por dentro. À noite ele vem. A certeza lhe dava uma nova cadência ao andar, mais lânguida, mais atenta a cada movimento de seu corpo. Flutuava.

O dia passou, ela nem sabia como. Lembranças vagas de entrar e sair de lugares, falar, trabalhar. Não tinha ido ao trabalho de carro, não confiava em sua concentração ao volante. Ele vinha, ele chegava. Faltava pouco agora, e ele vinha. Satisfeita, repassava mentalmente todos os preparativos. Nada fora do lugar, a casa limpa, perfumada com velas aromáticas e incenso. A truta na geladeira, pronta para assar. O vinho ela trazia consigo, francês, sutil. A sobremesa, delicado flan, receita de sua avó. No equipamento de som, música instrumental, violões flamencos, que sempre a faziam mais sexy e receptiva. O que havia para dar errado? Nada, pensava feliz. E ele estava para chegar.

Com um sorriso brilhante para o porteiro, ela sobe. Enfia a chave na porta, abre ligeira, olhando o relógio e contando os minutos, organizando mentalmente as tarefas que faltavam para recebê-lo como queria. Aí, viu a luz da secretária eletrônica piscando. Mensagem...

7.9.02

Carta ao senhor do meu sentimento

Caríssimo...

Meu maior medo nesta vida é não dizer a tempo tudo que me permita abrir as asas de borboleta do meu coração e voar como todo ser humano nasceu para voar. Sabe lá quando um ultraleve desgovernado, uma bala perdida, um carro em alta velocidade ou outro desastre qualquer emudeçam para sempre minha voz?

Em meio às mil e uma ternurinhas que minha fantasia planejara oferecer a ti, das mil e uma noites de conversa ao pé do ouvido imaginadas, diante da realidade nua e crua da não-retribuição do meu amor – que continua impávido e intransigente, recusando-se a morrer – tenho de fazer uso de um talento maior que o meu, buscar o consolo em uma dor maior que a minha. Como a ave busca as correntes de ar quente para voar mais alto e mais longe.

Daqui do alto, te digo: tudo o que faço, tu fazes comigo. Tudo o que penso, comento contigo em meu coração. Tudo o que vejo de belo, envio como um postal mental para ti. Tua presença é tão forte, tão intensa, que quase consigo me enganar e achar que tu estás mesmo aqui.

Recebe esta canção como um beijo.


Se eu não te amasse tanto assim
(Herbert Vianna / Paulo Sérgio Valle)

Meu coração, sem direção
Voando só por voar
Sem saber onde chegar
Sonhando em te encontrar
E as estrelas
Que hoje eu descobri no seu olhar
As estrelas vão me guiar

Se eu não te amasse tanto assim
Talvez perdesse os sonhos
Dentro de mim
E vivesse na escuridão
Se eu não te amasse tanto assim
Talvez não visse flores por onde eu vim
Dentro do meu coração

Hoje eu sei, eu te amei
No vento de um temporal
Mas fui mais, muito além
Do tempo do vendaval
Nos desejos, num beijo
Que eu jamais provei igual
E as estrelas dão um sinal
Hoje escutei pela primeira vez todo o disco "Se eu não te amasse tanto assim", da Ivete Sangalo, onde ela canta músicas antigas e novas, todas lindas, falando sobre amor. Por acaso, as duas primeiras músicas são de uma pessoa que tem uma ligação forte com a minha infância.

Ser filha de milico é uma coisa engraçada. Somos todos ciganos, de tanto em tanto tempo arrumamos nossas coisas e partimos para uma cidade nova. Não conseguimos fazer amizades duradouras fora do âmbito militar, porque ficamos pouco tempo com as pessoas de fora. Mas temos sempre contato com os outros filhos de oficiais enquanto crescemos, mesmo à distância. É esquisito, você vê seus amigos muito pouco, mas sempre sabe onde e como eles estão. Talvez filhos de diplomatas tenham a mesma sensação esquisita.

O acaso, no entanto, fez com que eu passasse sete anos seguidos da minha vida, dos sete aos treze anos, morando em Brasília. Nesta época foi que eu e meus irmãos estabelecemos contato com as pessoas que chamamos de "amigos de infância". Alguns deles eu nunca mais vi. Outros eu encontro de uma forma bissexta, e outros estão sempre por aqui. Mas com todos eles eu tenho uma ligação forte, diferente das amizades que estabeleci com pessoas só minhas, fora do ambiente militar, depois que entrei na faculdade e me estabeleci definitivamente no Rio de Janeiro.

Eu lembro que, quando cheguei em Brasília, em 1972, havia poucas meninas da minha idade para brincar. Meu irmão mais velho, no entanto, fazia parte de um grupo enorme de meninos, alguns deles já conhecidos, vindos do Rio como nós. Era uma matilha do barulho, sempre aprontando alguma pelas superquadras próximas. Eles faziam carrinhos de rolimã, e voavam pelas rampas de acesso aos prédios. Inventaram um jogo que lembrava de longe o baseball, jogado com pedaços de pau e um bola de tênis, que era pretexto para tantos palavrões que arruinaram para sempre um papagaio do nosso bloco. Eu fui testemunha de campeonatos e campeonatos de futebol de botão, e longas corridas de autorama no quarto do meu irmão. Eles não me deixavam participar, principalmente depois que os venci numa partida de botão. Mas eles eram fascinantes para mim – ah, se eram –, e eu os observei toda a minha infância.

No meio desta multidão de moleques, havia um que imediata e naturalmente tomou a liderança do grupo. Ele era filho do meio da família Vianna do 302, dois andares abaixo de nós, que morávamos no 502. Lá não havia meninas, mas eu me tomei de amores pela mãe deles, que muitos anos depois tornou-se minha madrinha de crisma. Passei boas horas aprendendo crochê com a Tia Teka, escutando aquele cantadinho gostoso da Paraíba. Os meninos passavam voando para lá e para cá o dia todo. O nome daquele menino especial? Herbert.

Ele era uma coisinha magra e cabeluda (sério!) que nunca parava quieta, e que logo inventava apelidos para todos os meninos do grupo. Meu irmão rapidamente virou Egg, depois do dia que o barbeiro exagerou no corte e revelou o oval perfeito da cabeça dele. Herbert – junto com o irmão Hermano – nos apresentou músicos como Elton John, David Bowie (como eu achava horrível a capa do disco Diamond Dogs!), Michael Hedges, Santana e tantos outros. Ele era um furacão, e quem o conheceu menino já sabia que nada menos que uma parede e tijolos seria capaz de pará-lo. Não foi uma parede de tijolos, foi a força da natureza que o fez pausar. Que pausa dolorida! Justo quando ele estava vivendo uma fase de vida tão boa, criando suas músicas e seus filhos, cercado da admiração de seus fãs e de seus pares, ao lado da mulher amada.

Hoje eu não convivo mais com ele, tomada pelo pudor de quem não quer ver seu carinho confundido com piedade ou curiosidade barata. Falo ocasionalmente com minha madrinha, tornada mãe novamente pela força das circunstâncias. Ele é forte, e eu espero que ele desafie os deuses, como fez Prometeu, até que estes o perdoem por roubar o fogo criativo e oferecê-lo aos homens. Mas sei que vai ser uma caminhada de passo de formiguinha, com o mundo todo nas costas. Quem daquele grupo imenso de crianças pensaria que isto ia acontecer com o melhor de nós?

Algumas tragédias simplesmente não têm explicação.

2.9.02

Tem certas coisas que só um grande poeta sabe dizer a contento... e este é um dos maiores de língua portuguesa. Espero poder recitar este poema para ELE um dia. Sem chorar.

Volta
(Manuel Bandeira)

Enfim te vejo. Enfim no teu
Repousa meu olhar cansado.
Quanto o turvou e escureceu
O pranto amargo que correu
Sem apagar teu vulto amado!

Porém já tudo se perdeu
No olvido imenso do passado:
Pois que és feliz, feliz sou eu.
Enfim te vejo!

Embora morra incontentado,
Bendigo o amor que Deus me deu.
Bendigo-o como um dom sagrado.
Como o só bem que há confortado
Um coração que a dor venceu!
Enfim te vejo!

1.9.02

Vejam só, esta coisa de testes na Internet até que é divertida??? Estava visitando o querido ancião Matusalém Matusca, e vi este teste das vidas passadas... e o resultado foi interessante...



What Was Your PastLife?
Aprendi umas coisinhas durante a minha estadia no casulo. A primeira, e mais importante, veio de uma frase de um amigo querido: "Sue, não se entrega a chave do desejo a qualquer um, nem se deve implorar que alguém a pegue." Realmente, amor é algo que só se oferece uma vez. A insistência é chata, e magoa quem oferece e quem recusa.

A segunda é que este sentimento não vai embora. Ele está aqui para ficar.

Terceiro, descobri a principal fonte do meu sofrimento. Eu precisei amputar algo em nascimento, o que sempre me causa um mal-estar terrível. Enquanto há um fiapo de esperança de salvação, eu preservo. O problema, neste caso, é que não existe sequer um fiapo de esperança. Então, subi o monte, levei meu filho primogênito ao altar do Senhor, e o imolei. Matei meu unicórnio.

A melhor descoberta, a que me deu finalmente forças para sair do casulo, foi a de que, ao matar a possibilidade de realização deste sentimento, eu o introjetei, e hoje ele é parte de mim, inextricável. A única forma que eu encontrei de conviver com ele sem enlouquecer foi de tentar transmutá-lo em algo mais difuso, que hoje funciona como a pele da minha alma, recobre tudo o que eu faço, é parte de mim.

Por enquanto, sofro ainda de uma dor difusa, um excesso de sensibilidade, como a pele nova de um corte, ou a pontada de uma nova cicatriz. Com o tempo, eu sei, a cicatriz vai doer menos, e se a tristeza permanece, permanece como algo lírico, mais uma gota de melancolia no meu olhar. Mas a possibilidade da alegria, que tinha partido, está de volta.

Saí do casulo. Minhas asas ainda estão amarfanhadas e molhadas, mas estão ficando maiores, mais fortes, mais bonitas.

31.8.02

Lentamente o casulo se dissolve. Foi a dor que diminuiu ou eu que fiquei mais forte?
Ocean Gypsy
(M. Dunford / B. Tatcher)
© Turn of the Cards Music

Try to take it all away, learn her freedom just inside a day
And find her soul to find their fears allayed
Try to make her love their own, they took her love, they left her there
They gave her nothing back that she would want to own

Gold and silver, rings and stones, dances slowly off the moon
No one else could know, she stands alone
Sleeping dreams would reach for her, she cannot say the words they need
She knows she’s alone and she is free

Ocean Gypsy of the Moon
The Sun has made a thousand nights for you to hold
Ocean Gypsy, where are you?
Shadows followed by the stars have turned to gold, turned to gold

Then she met a hollow soul, filled him with her light and was consoled
She was the Moon and he the Sun was gold
Eyes were blinded with his light, the sun she gave reflected back the night
The Moon was waning almost out of sight

Softly Ocean Gypsy calls, silence holds the stars awhile
They smile sadly for her where she falls
Just the time before the dawn, the sea is hushed, the ocean calls her
Day has taken her, and now she’s gone.

Ocean Gypsy of the Moon
The Sun has made a thousand nights for you to hold
Ocean Gypsy, where are you?
Shadows followed by the stars have turned to gold, turned to gold

No one noticed when she died, Ocean Gypsy shackled to the tide
The ebbing waves returning, spreading wide
Something gone within her eyes, her fingers lifeless struck the sand
Her battered soul was lost, she was abandoned

Silken threads like wings still shine, winds take pleasure, still make patterns
In her lovely hair, so dark and fine
Stands on high beneath the seas, cries no more, her tears have dried
“Oceans weep for her”, the ocean sighs

Ocean Gypsy of the Moon
The Sun has made a thousand nights for you to hold
Ocean Gypsy, where are you?
Shadows followed by the stars have turned to gold, turned to gold

30.8.02

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
O Unicórnio e o Caçador (Parte I)



Ela era um unicórnio diferente. As pessoas geralmente associam um unicórnio com paz e bem-aventurança, com cura e inocência. Ela, no entanto, era o unicórnio da inocência perdida, e tinha durante sua longa vida usado mais vezes seu chifre mágico como espada que como meio de cura. Sim, ela tinha matado e ferido. Nunca por opção, mas com o cerrar de mandíbulas e a determinação feroz de quem luta por aquilo que tem de mais precioso. Ela não se esquivava de derramar sangue, mas toda a vez lhe vinha o medo que o cheiro de sangue derramado deixasse de lhe subir às narinas como podridão e ficasse atraente. Ela tinha medo de se tornar o que mais odiava: de se tornar uma criatura que mata por prazer. Temia esquecer que era um unicórnio. Não encontrava há muito com outros de sua espécie, que haviam se recolhido do mundo sensível para evitar encontros com seres humanos modernos.

Os humanos haviam mudado muito, e já fazia centenas de anos desde que a última donzela virgem e pura de coração havia colocado uma guirlanda de flores em seu pescoço. Muito, muito tempo se passara. Hoje era raro encontrar donzelas de qualquer espécie, e as mulheres não sabiam mais fazer guirlandas. A maioria nem tinha mais jardim para plantar flores. Ela, no entanto, não conseguia abandonar tudo com a facilidade dos outros unicórnios, sentia-se presa ao mundo material por um amor desesperado, e vezes sem conta ela se perguntara se esta sua incapacidade não seria uma falha grave em seu espírito. Será que lhe faltava algo?

Ser um unicórnio solitário no mundo moderno fazia com que ela fosse arisca e temerosa. Poucos eram os lugares onde ela corria livremente. Na maior parte das vezes ela velava o sono das crianças escondida por trás do reflexo de prata da lua, e nem mesmo as crianças sabiam que ela estava ali. Não, nenhum humano podia vê-la mais, pois a reação de reverência e adoração dos humanos de outros tempos desaparecera. Agora, humanos de todas as idades eram predadores. Até as crianças bem pequenas, que em tempos remotos ao vê-la diziam “bonita!”, hoje usavam outras palavras, como “meu!” e “dá!”.

Ela estava só, totalmente só, sem iguais e sem amigos. Lentamente a tristeza tomava conta dela, e transparecia em todo o seu corpo. Ela já tinha sido da cor da areia mais branca quando bate o sol forte, agora sua pelagem tomava a cor amarelada do marfim antigo. Ela não tinha mais brilho e – se não fosse um ser imortal – poderíamos dizer que a velhice estava tomando conta dela. Mas não era velhice, não no sentido que os humanos ficam velhos, era cansaço. Cansaço de alma. Uma alma recoberta por anos de solidão e desencanto.

Não era natural nela fugir, se esconder, lutar e machucar. Ela era um ser que se deleitava na companhia de outros, na admiração que sabia suscitar. Um unicórnio era naturalmente vaidoso, e ela havia sido das mais vaidosas entre eles. Agora, quem se importava? Para quê manter-se bonita, se nem mesmo os animais a reconheciam mais? Se não haviam mais puros de coração, que soubessem quem ela era?

Depois de pensar muito, ainda incapaz de abandonar o mundo que tanto amava e onde vivera por tanto tempo, ela tomou uma decisão: se no mundo não cabia mais sua beleza, ela se sacrificaria por ele antes que a feiúra do mundo a transformasse em um arremedo de si mesma. “Melhor derramar meu sangue, para que seja sugado pela terra e transformado em vida, que tornar-me um espectro e lentamente desaparecer” pensava ela. E começou a buscar alguém que a reconhecesse pelo que ela era, e a ajudasse a fazer este último sacrifício.
O Unicórnio e o Caçador (Parte II)

Ele não era caçador por gosto. Pelo contrário, tantas vezes o olhar de suas presas, enquanto sucumbiam, era rememorado em noites longas de insônia. Ele não era caçador por prazer, era por necessidade, e era dos melhores. Ele era um caçador moderno, um “executivo”, e caçava outros de sua espécie.

Em sua infância e juventude ele possuíra um espírito sensível como poucos, e isto era a causa de brigas constantes entre seus pais e ele. “Pare de sonhar, menino!” “Esta história de ficar em casa lendo romances já foi longe demais! Vá lá fora jogar bola!” A ladainha não tinha fim. Ele insistira com seus pais e tivera aulas de piano, mas o sonho de ser um concertista foi podado na raiz: “Música clássica uma ova! Isso é coisa de boiolinha! Você vai trabalhar na empresa do seu pai, e você sabe disso. Vá estudar administração. Piano é um bom hobby, elegante e refinado. E só.”

Com o passar do tempo, sua sensibilidade foi recoberta com camada após camada de cinismo, e ele descobriu que tinha uma armadura ao invés de uma alma. Por dentro, oco. Por fora, duro como uma rocha. Foi o primeiro de sua turma de administração, e levou a empresa de seu pai a um sucesso que nunca tivera. Ele era rico, famoso, conhecido como empresário impiedoso. Quanto mais impiedoso era, mais a sociedade o incensava e caía a seus pés, e mais ele se odiava.

Como uma espécie de autoflagelação, ele caçava também animais selvagens. Cada um deles que morria em suas mãos era uma faca cravada em seu coração, era mais um fantasma a percorrer o deserto da sua alma. Era como ele se castigasse pela traição à sua natureza verdadeira, matando a natureza a seu redor. E ele era bom neste tipo de caçada também. Caçara animais de todos os tipos, em todos os continentes. Tinha uma sala de troféus em sua casa, onde colocara seu piano. Enquanto ele tocava, os animais o fitavam com seus olhos de vidro. Vazios, como sua alma.

Ele caçava, e não sabia porque caçava, mas sabia que tinha que continuar caçando. Caçou uma linda mulher para ser mãe de seus filhos, caçou para eles as melhores escolas. Mas era um marido de coluna social e um pai de porta-retratos. Sua mulher e seus filhos não conseguiam furar a armadura, e não desconfiavam do deserto que havia lá dentro. A esposa se conformara com a vida de enfeite, e as crianças com a orfandade. Ninguém estranhava mais. Só ele sofria. E quando a dor estava a ponto de o destruir, ele ia para a sala de troféus e tocava piano. Ou partia para o mato para caçar.

Foi tocando piano no escuro, de madrugada, numa noite de lua cheia, que ela o encontrou pela primeira vez. Ele não a viu, a claridade da lua a escondia. Mas ela viu a morte nas paredes, e o tormento em sua música e em seus olhos. Ela entendeu que ali estava alguém que via a morte como ela. Alguém que entenderia quem ela era e o que ela queria. E o unicórnio decidiu que este seria o caçador que a abateria.

O Unicórnio e o Caçador (Parte III)

A caça estava arisca naquele dia, e ele pensava num misto de alívio e ansiedade que voltaria naquele dia sem um troféu, quando ela surgiu do meio das árvores. Só a sua presença trincou sua armadura de cima a baixo. Os dois podiam ouvir sua alma estalando como geleira na primavera. Ela se pôs diante dele, linda, trágica, só, eterna. Ele estava diante dela, nú e amedrontado, mortal, efêmero. Os dois se amaram perdidamente.

O choque de vê-la fez com que ele caísse de joelhos. Os olhos dela se suavizaram com a reação, e ela tocou um humano pela primeira vez em centenas de anos. Um leve toque com seu chifre, como uma bênção. A armadura partiu-se em mil pedaços com um estrondo. Ele começou a chorar. Chorou muito, muito tempo. Chorou por cada animal que matara, por cada homem de quem tomara o pão, por cada sonho perdido, chorava não sabia mais porque. Era um dilúvio na sua alma. E ela pairava por sobre as águas.

Ela esperava, paciente. Sim, é assim que tem de ser, assim foi predestinado. Ela sabia. O amor dela por ele tornava o que estava por acontecer ainda mais sagrado. Num gesto de carinho, aproximou-se mais dele, e esfregou seu focinho aveludado no ombro curvado pelo choro. Ele agarrou-se a seu pescoço, desesperado, e chorou. Não poderia parar de chorar, nem se tentasse. E ele não queria parar. Um longo tempo depois, esgotado o pranto, ela sussurrou em seu ouvido: “Faça o que tem de fazer...”. Ele não conseguia falar, apenas sacudia a cabeça, exausto. Agarrado a ela. Não. Ela pediu: “Olhe para mim... Olhe em meus olhos.”

Ele abriu os olhos e ela deu um passo atrás. Perdera o tom amarelado, perdera a desesperança. Ela faiscava como um prisma, refletindo todas as cores, era toda luz branca. Ele temia ficar cego depois de tanta luz. Ela olhava dentro de sua alma e via os indícios de primavera ali também. “Vamos, amado, termine o que começou. Liberte-nos.”
[O Unicórnio e o Caçador (Final)

Ele não sabia de onde tirara forças para chegar em casa. Tinha uma sensação de afastamento, e imaginava estar com uma aparência de lunático. Achava que os filhos e a mulher gritariam de espanto ao ver a loucura e o sofrimento em seus olhos... e a luz. “Eles vão fugir de mim aos berros”, pensava.

O choque de tudo o que acontecera deixara-o anestesiado, e ele observava a si mesmo de uma distância, como se não fosse ele andando até o carro, jogando a mochila no banco do carona, girando a chave na ignição, tomando a direção da cidade. Num gesto automático, ligou o cd-player do carro. Era Mozart tocando. A música ajudou no resto do caminho.

A casa estava escura, as crianças estavam passando o final de semana na casa da avó materna. Tudo estava silencioso. Vagamente, ele se perguntou onde andava a mulher, mas um cansaço imenso o invadiu. Arrastou-se até o banheiro, tirou as roupas todas e entrou no chuveiro. Ficou lá, parado, deixando a água escorrer por uns 40 minutos. Depois enrolou-se num roupão atoalhado e caiu na cama ainda molhado. Dormiu.

Acordou com a mulher o sacudindo. “Você está se sentindo bem?” ela perguntava, meio desconfiada. Da outra dimensão onde ele se encontrava, ele olhou para a sua mulher, e ela nunca pareceu tão linda, tão maravilhosamente certa para ele. Ele olhava para ela encantado, como se nunca a tivesse visto antes.

“O que foi? Você está estranho...” ela perguntou alarmada. Ele sorriu, embevecido, e disse: “Eu amo você. Muito.” Puxou sua mulher para cima de seu corpo e a beijou. Como se fosse a primeira vez. Ela estava assustada, nervosa, depois surpresa. Havia muito tempo desde o último beijo, e ele nunca a beijara ASSIM. Quem era aquele homem que aparecia de repente de dentro de seu marido?

Depois do beijo, palavras. Ele apresentou à sua esposa tudo aquilo que ela não conhecia - sua alma - agora não um deserto, mas uma floresta onde habitava um unicórnio. Quando sentia a presença DELA, por entre as árvores, as lágrimas desciam. Por fim, as lágrimas de sua esposa também caíram, e eles passaram a noite toda se conhecendo novamente.