15.7.03



O Xale



Tic-tic-tic-tic... fazia o bicho da seda. Tic-tic-tic-tic... Tic-tic-tic-tic... lá ia ele, de um lado para o outro, de um lado para o outro, a faina nunca cessava. O fio mais delicado de todos produzia este bicho da seda. Tic-tic-tic-tic... Tic-tic-tic-tic...

Xic-Xic-Xic... fazia a aranha. Xic-Xic-Xic... Xic-Xic-Xic... sentada em frente a um tear, ela tecia os fios do bicho da seda. A trama mais complexa e leve ela tecia. Xic-Xic-Xic... Xic-Xic-Xic...

A borboleta esvoaçava em torno da cabeça da fada-chefe. Ela tinha procurado nas flores mais raras o pólem mais dourado e perfumado, as pétalas mais suaves e coloridas. Mas nada daquilo parecia ser delicado o suficiente para aquele fio e aquela trama. A borboleta esvoaçava, nervosa e infeliz, e a Fada Tecelã observava tudo no mais profundo silêncio.

Lentamente o tecido mais raro do mundo estava tomando a forma de um xale mágico. Era o xale mais delicado, mais feminino, mais leve e mais belo de todos. Mas era praticamente invisível, porque o fio do bicho da seda era fino como um cabelo de anjo e incolor como a água da mais pura nascente da montanha, e a trama da aranha era sutil como o pensamento de Deus. Tudo o que se via era um leve faiscar ocasional, causado pelo eterno movimento da aranha. Assim que o tecido abandonava as mãos da fiandeira, ficava invisível para todos os presentes.

As outras fadas olhavam Saliel e se entreolhavam, preocupadas. Havia dias, semanas, que ela não se movia daquele exato lugar, e seus olhos apenas faziam leves movimentos de ir e vir, do bicho da seda para a aranha, da aranha para o bicho da seda. Mais profundo silêncio não havia acontecido no mundo desde antes da criação. Saliel era a fada-chefe da tecelagem justamente porque ninguém mais conseguia produzir como ela tecidos delicados e de uma beleza extraordinária. E ela havia decidido produzir o xale mais lindo do universo, com a intenção de presentear a Rainha das Fadas no seu jubileu de 5000 anos.

Ninguém duvidava que Saliel fosse capaz disto, mas as fadas começaram a ficar nervosas quando o tecido raro e lindo – produzido pelos melhores insetos tecelões de que se tinha notícia – ia ficando impossível de enxergar à medida que se afastava das mãozinhas delicadas da aranha fiandeira. Como tingir um tecido feito de sonho e de ar? As fadas murmuravam entre si que – se alguém fosse capaz disto – Saliel com certeza era este alguém. E o tempo passava, e a borboleta auxiliar de Saliel trazia material de todos os tipos para a fada examinar. Ela olhava de relance e balançava quase que imperceptivelmente a cabeça, num movimento de negativa. A pobre borboleta azul não sabia mais o que fazer, e o silêncio se adensava como o prenúncio de uma tempestade.

Tic-tic-tic-tic... fazia o bicho da seda. Tic-tic-tic-tic... Tic-tic-tic-tic... Xic-Xic-Xic... fazia a aranha. Xic-Xic-Xic... Xic-Xic-Xic...

O xale estava praticamente pronto, e em mais alguns instantes deixaria as mãos da aranha para tornar-se realmente invisível para este mundo, quando Saliel fez todas as fadas presentes pularem, alarmadas, ao usar usa voz pela primeira vez em 20 dias:

- Beliel.

Alvoroço geral. Quem era Beliel?

- Beliel.

As fadas estavam estupefatas. Saliel iria mesmo fazer isto? Uma coisa que a bondosa fada jamais fazia, usar o chamado tríplice, que nenhuma criatura do reino mágico podia deixar de responder? Já havia ocorrido um grande número de cenas embaraçosas para fadas e elfos e gnomos assim chamados, que foram arrebatados do seu banho e de outras situações menos dignas para a presença de um superior. Saliel costumava ser mais cortês em seus chamados....

- Beliel.

A única perturbação do ar foi um leve estremecimento do fio que o bicho da seda enrolava no carretel para o uso da aranha. E lá estava um elfo esguio e muito, muito branco, da cor das nebulosas do céu, como se tivesse sido mergulhado na via láctea ao nascer (o que de fato ele tinha). Seus cabelos eram prateados como os raios da lua cheia, e ele era muito belo, mas a beleza estava perturbada no momento por um olhar decididamente assassino.

- QUEM FOI que me chamou desta forma???

- Beliel, disse a fada mais uma vez, e então ele a viu. A ruga irritada suavizou-se, o olhar irado abrandou, e um leve sorriso tocou o canto de sua boca.

- Eu devia ter imaginado. Quem mais teria a coragem e a cara de pau? Olá, Saliel. Faz tempo.

- O tempo não o tornou mais brando, Beliel.

- Nem a você menos fria, Fada Tecelã. Porque me chama?

- Fria? Se eu não me protegesse do seu fogo de estrelas, elfo, teria queimado. Mas não foi para falar disto que eu o trouxe aqui.

- E para o que foi?

- Olhe. Saliel apontou o tear.

Beliel não havia percebido o tear, tão entretido com a própria zanga ele estava ao chegar. Agora, ao olhar o produto da aranha e do bicho da seda, seus olhos se arregalaram e ele ficou tão imóvel quanto a fada, que durante toda esta cena dramática permanecera estática. Por um longo momento o Elfo olhou o xale. Por um momento mais longo ainda, voltou os olhos para a Fada, que também o encarou profundamente.

ALGO aconteceu durante aquela troca de olhares, porque repentinamente as fadas presentes não conseguiam manter os olhos fixos naqueles dois rostos. Era como se um PUDOR, uma FORÇA, mantivesse todos os olhares baixos, menos o da Fada Saliel e do Elfo Beliel.

- Se você quer mesmo que eu faça isto, Sali, você tem de vir comigo.

- Acho que finalmente estou pronta para dizer sim, Lelo.

- Então vamos.

Os presentes não tinham escutado esta troca de palavras suaves, e se surpreenderam quando o elfo arrebatou a Fada Tecelã, o xale que abandonava o tear naquele instante, e sumia com os dois tesouros numa explosão de luz. Na confusão que se seguiu, apenas a borboleta sorria embevecida e murmurava...

- Névoa de estrelas, é isso! Névoa de estrelas!

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