9.6.03



Os Homens - Cora Coralina



Em água e vinho se definem os homens.

Homem água. É aquele fácil e comunicativo.
Corrente, abordável, servidor e humano.
Aberto a um pedido, a um favor,
ajuda em hora difícil de um amigo, mesmo estranho.
Dá o que tem
-- boa vontade constante, mesmo dinheiro, se o tem.
Não espera restituição nem recompensa.

É como água corrente e ofertante,
encontradiça nos descampados de uma viagem.
Despoluída, límpida e mansa.
Serve a animais e a vegetais.
Vai levada a engenhos domésticos em regueiras, represas e açudes.
Aproveitada, não diminui seu valor, nem cobra preço.
conspurcada seja, se alimpa pela graça de Deus
que assim a fez, servindo sempre
e à sua semelhança fez certos homens que encontramos na vida
-- os Bons da Terra -- Mansos de Coração.
Água pura da humanidade.

Há também, lado-a-lado, o homem-vinho.
Fechado nos seus valores inegáveis e nobreza reconhecida.
Arrolhado seu espírito de conteúdo excelente em todos os sentidos.
Resguardados seus méritos indiscutíveis.
Oferecido em pequenos cálices de cristal a amigos
e visitantes excelsos, privilegiados.

Não abordável, nem fácil sua confiança.
Correto. Lacrado.
Tem lugar marcado na sociedade humana.
Rigoroso.
Não se deixa conduzir -- conduz.
Não improvisa -- estuda, comprova.
Não aceita que o golpeiam,
defende-se antecipadamente.
Metódico, estudioso, ciente.

Há de permeio o homem vinagre,
uma réstia deles,
mas com esses não vamos perder espaço.
Há lugar na vida para todos.
Em qual dos grupos se julga situado você, leitor amigo?

Eu li este poema da velha poetisa goiana Cora Coralina com o coração batendo forte pelo reconhecimento, quase podendo escutar a voz tremida da anciã a declamá-lo. As velhas senhoras da minha família têm esta força da poetisa, força que vem da terra e do conhecimento das coisas da vida. Eu vi minha avó e minha tia-avó, bugras velhas lá das bandas de Mato Grosso, cheias desta sabedoria do mato e das coisas que crescem. Nenhuma sapiência de livro, mal sabiam ler o livro de orações e o de histórias da carochinha, de noite, antes de eu pedir minha bênção e ir dormir. Mas aquela voz, cheia de ressonância, como que vindo das profundezas do passado, esta voz eu conheço, e é a mesma voz que me chega de Goiás.

Vó Coralina, eu sempre tentei com todas as minhas forças ser mulher-água. Mulher-fonte, que traz aos outros a força de que necessitam, sempre foi de servir que veio a minha força. Mas mansa, Vó, mansa eu não sou não. Que serei eu então?

Mulher-vinho eu certamente não sou, com estas porteiras da alma escancaradas, que deixam entrar qualquer viajante que passe por perto. Não sou nobre, sou simples e campesina, de pé no chão e de fala simples.

Vinagre? Azedei, Vó Cora? Acho que não, temo que sim, luto contra. Às vezes acho que perdi a batalha, mas basta um olhar doce da minha gata, um sorriso de criança pequena, uma flor bonita, e minha alegria de viver explode incontida.

Acho, Vó, que sou mulher-sangue, parindo minha alma todos os dias ao acordar, e recolhendo os cacos dela à noite, como uma Pietá a sustentar o filho morto nos braços. Mulher-sangue, suor e lágrimas.

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