2.11.03



A visita



Adormeci no meio da tarde e tive um sonho. No sonho, subia as escadas para a varanda de uma destas grandes casas de fazenda, como uma das antigas fazendas de café do século dezenove. Grande, espalhando-se para a direita e para esquerda. Dois andares, alva, janelas e portas pintadas de azul fechado, com molduras de pedra. Piso e teto de tábua corrida. Nada me é familiar, mas tudo me é familiar. A varanda está vazia, mas a própria casa parece me convidar para entrar. Não sinto confusão nem medo, mas uma certa expectativa.

Logo defronte à porta de entrada, um corredor que de tão longo parece se estender até o infinito, com portas a intervalos regulares dos dois lados. A casa é muito antiga, mas não passa a impressão de velhice, muito pelo contrário, toda ela parece pulsar viva. A sala principal, à minha esquerda, está na penumbra. Uma luz bonita filtra pelas cortinas leves. Vejo duas grandes arcas encostadas nas paredes, com imensos jarros de louça repletos de flores do campo, um sobre cada arca. Surpreendo-me com os dois conjuntos modernos de sofá, de algodão cru e parecendo ser muito macios e confortáveis. A sala é imensa, e vejo que à minha direita existe uma sala de jantar igualmente grande, com duas imensas mesas de jacarandá. Encostadas na parede, ladeando uma porta, duas grandes cristaleiras repletas de louça.

Meio incerta sobre o que fazer, caminho devagarinho até a primeira cristaleira para observar os conjuntos de porcelana. A casa é toda muito linda e acolhedora, mas até agora não vi ninguém. Até que ouço uma voz...

- Oi, filha...

Dei um pulo. Ela estava na entrada da sala de jantar, sorrindo. Como sempre, sorrindo.

- Mãe?!?

Ela me deu aquele sorriso que reservava só para mim, aquele que ela dava quando estava muito satisfeita comigo. Ela estava diferente, especialmente do tempo que mais lembro, o tempo da doença. Ela estava... melhor. Era minha mãe, mas era minha mãe como ela devia ser, sem uma certa tensão que lhe fazia ranger os dentes, sem os medos que lhe toldavam os olhos, sem doença, sem seio amputado, com uma pele linda de pêssego e os olhos verdes cor de folha nova. Magra, com o corpo parecido com o que vi em sua foto de casamento, e um rosto sem marcas, sem idade determinada. Ao lado dela, quieto a me observar, sentado tranqüilamente, o Buggie, cãozinho que ela ganhou de presente de uma amiga. Também sem os sinais de doença e velhice, sem a cegueira.

- Mãe...
- Sim, filha. Que bom que você veio visitar.
- Eu estou dormindo, não estou?
- Está.
- Mãe, como você está linda!

Ela sorriu e me abraçou. Eu não sentia a vontade de chorar que sinto quando lembro de seu abraço acordada, porque não era uma lembrança saudosa, estava mesmo entre os braços de minha mãe. Quase protestei quando ela soltou do abraço e pegou minha mão.

- Seus avós vão ficar tristes de saber que você veio quando eles não estavam.
- Mãe, que lugar bonito!
- É nossa casa, Assunção Maria.
- Nossa casa?
- Sim, estamos aqui, todos nós. Suas tias e tios, seus avós e bisavós, todos nós. Seu irmãozinho também está aqui.
- Pedro Paulo está aqui?!?
- Sim, está.
- Posso vê-lo, mãe?
- Não, filha. Você só vai poder conhecer seus parentes que morreram antes de você nascer quando vier de vez para cá. Filha, não deixe de vir!
- Mãe, algum parente nosso que eu conheço não conseguiu vir?

Os olhos dela encheram de lágrimas, mas ela não falou nada. Cheia de culpa por ter entristecido minha mãe, mudei de assunto:

- Mãe, o Buggie! Ele está aqui também!
- Ah, filha, você sabe o quanto eu amo o Buggie e o quanto ele me ama. Ele me achou aqui.
- Posso pegar ele no colo?
- Pode.

Buggie nunca gostou muito de colo, era um yorkshire terrier muito peludo e morria de calor, mas sempre foi um cavalheiro e não se incomodou que eu o apertasse um pouco. A mãe foi andando em direção à sala de estar e eu a acompanhei com Buggie nos braços. Ela sentou em um dos sofás e eu sentei pertinho. Coloquei o Buggie no chão, e ele deitou naquela sua pose característica, as patas traseiras esticadas para longe do corpo, a barriga toda encostada no chão de madeira lustrada. Mamãe sorriu, perguntou:

- Quer cafuné?

Ela não precisou perguntar duas vezes, deitei imediatamente a cabeça em seu regaço, e ela acariciou meus cabelos. Ela cheirava ao seu perfume favorito, Fleur de Rocaille... o toque, o cheiro, tudo tão familiar...

- Mãe, não quero ir embora...
- Filha, você não pode ficar. Não é ainda sua hora de vir.
- Mãe, está tudo tão penoso... as coisas parecem ficar cada dia mais difíceis. Aqui sinto tanta paz...
- Assunção Maria, você sabe que ainda tem muito o que fazer. Agradeça a Deus por esta visita, e por saber que estamos aqui à sua espera, filha. Traga seus irmãos e seu pai para cá.
- Como, mãe?
- Reze, filha. Agora sossega, aproveita o cafuné...

Eu me acomodei melhor e ela continuou a acariciar meus cabelos, e a cantarolar baixinho as canções que cantava para me ninar em criança. Eu fui ficando sonolenta, mas briguei com o sono, porque não queria partir. Eu sabia que, se adormecesse, ia acordar longe dali. No entanto, a voz suave da minha mãe foi me embalando, os olhos foram pesando e fechando... antes de adormecer completamente, escutei baixinho a frase que ela disse para mim no hospital, um pouco antes de morrer...

- Filha, você é tão linda....



TRRIMMMMMMMMMMMMMMMMM!!!

Acordei num pulo, sobressaltada. Era o telefone. E era engano.

Nenhum comentário: